sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

O que é o ateísmo militante? (em 2011)


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NOTA: Este texto é um dos mais claros e diretos da série que tenho lançado nas últimas semanas. Pra quem curte os temas da laicidade e do ateísmo, e tem sentido falta desses debates no Brasil dos últimos anos, essa é uma lufada de ar fresco, colocando de forma clara termos que estavam muito em voga no ápice do “neoateísmo”. De fato, muitos desses escritos são antes tentativas de esclarecer pensamentos a mim mesmo do que expor conhecimento a outros. Mas decidi republicar porque acredito ter voltado a ser hora de falar sobre descrença e fanatismo religioso, e porque essa trajetória de meu amadurecimento intelectual também pode ajudar pessoas que pensam igual a mim. Na segunda metade de 2011 eu ainda estava ruminando o livro Deus, um delírio, de Richard Dawkins, um best-seller do assunto na época que eu jpa tinha lido outras vezes, e por isso muitas vezes aludo a ele nominalmente. Hoje penso que esta obra não é mais suficiente pra pensar um tema tão complexo, mas as gotas de reflexão novamente ajudam a encarar essa nossa época tão diferente.



A década de 2000, em que se acirraram muitos conflitos religiosos e se denunciou explicitamente constantes violações do Estado laico em algumas regiões do mundo ocidentalizado, presenciou ainda, e como consequência, o surgimento de um fenômeno que, no geral, pode ser chamado de “ateísmo militante”, às vezes taxado injustamente de “ateísmo fundamentalista”. Marcado pela forte oposição aos abusos das religiões institucionais, coloca novamente na ordem do dia o esclarecimento da definição do que é ser ateu, caracteriza-se pela atuação ativa e decidida em prol das causas com as quais simpatiza e destaca-se pela defesa de movimentos progressistas e geralmente muito polêmicos e avançados para a época em que se encontra.

Outras pessoas já tentaram fazer isso de modo resumido, e eu mesmo às vezes me vi obrigado à mesma missão inglória, mas aqui se faz necessária uma conceituação mínima do que seja “ateísmo”, ao menos dentro deste texto, para evitar ambiguidades e desenvolver com vigor a argumentação. O “ateu” – palavra que surgiu antes –, embora tenha significado originalmente “aquele que não crê nos deuses oficiais”, passou a designar aquele que nega a existência de qualquer tipo de força ou inteligência sobrenatural ou externa à matéria, incluídas as mais variadas espécies de deuses, assim como a possibilidade de violações temporárias das leis naturais conforme vontades individuais – os chamados “milagres”. Ampliando-se a descrição – e em geral isso já está subentendido –, ele também não aceita submeter-se a nenhuma forma de crença, ritual ou culto sagrado instituído pela tradição ou por grupos particulares nem seguir passivamente suas normas e restrições, o que quase sempre implica rejeição a qualquer espécie de dogmatismo ou de adoção de ideias ou teorias não verificadas sobre o mundo, sua origem e seu funcionamento. Outro ponto importante é o afastamento da noção de que a moralidade e o caráter dependem da religiosidade, e não, como parece mais plausível, de condições familiares, educacionais, culturais, psicológicas e genéticas; em última análise, há crentes bons e maldosos, assim como há ateus bons e maldosos. Por ora, deixo voluntariamente de lado as inúmeras distinções entre ateísmos “forte”, “fraco”, “agnóstico” e outros matizes da descrença, pois eles pouco interessam para os corolários práticos mais comuns da apostasia, que são o apoio a certos projetos de sociedade e a certas lutas emancipatórias.

Normalmente, e com grande correção, não se atribui nenhum preceito ou dogma adotado de modo obrigatório por todos os ateus, até porque o ateísmo, à primeira vista, é apenas a negação da existência do sobrenatural, das religiões como absolutamente necessárias ao bem-estar coletivo e da moralidade como dependente de ditames sobre-humanos, embora muitos filósofos afirmem que esses elementos são parte de uma “doutrina” ateísta. Por conseguinte, ainda que a maioria dos ateus aceite esses postulados em maior ou menor grau, não haveria um conjunto de regras positivas comuns que nascesse dessa visão. De qualquer modo, na prática, os ateus costumam consentir em muitas questões a respeito de problemas éticos e sociais, e muitas vezes com uma postura progressista, como a legalização do aborto, a liberdade de expressão e de consciência – incluída aí a religiosa –, a não interferência das religiões na ciência e na política, a criação não agressiva dos filhos com base no desenvolvimento do pensamento crítico e da tomada independente de decisões saudáveis, a objeção a modelos autoritários de governo e de gestão, a não violência, a preservação da integridade física e psíquica do ser humano e a luta contra todo preconceito, sobretudo os de cor da pele, sexo, gênero, crença, deficiência física ou mental e opção política, alimentar ou lúdica. Essa escolha advém do fato de que, normalmente, quando uma pessoa se liberta do modo religioso de pensar, isto é, procurar encaixar os fatos da vida em credos pré-concebidos ou exteriores a seu próprio raciocínio, ela experimenta uma sensação natural de simpatia por todos os grupos ou indivíduos que são ou foram subjugados por formas parecidas de opressão ou limitação.

Essa libertação frequentemente é acompanhada de uma vontade apaixonada de expressar a nova personalidade e de denunciar todas as situações em que está mais ou menos clara a contradição com o bom-senso e com os direitos humanos básicos. Daí nasce a posição “militante”, de uma loquacidade fervorosa e incisiva, muito fácil de confundir com o fundamentalismo ou outros meios de enquadramento irracional. Essa comparação, muitas vezes feita deliberadamente, mesmo quando se sabe que é incorreta – enfim, a velha desonestidade intelectual com fins propagandísticos –, advém de dois fatos muito difundidos. O primeiro, ocorrente em qualquer ponto do tempo e do espaço, é o choque entre o que o senso comum considera correto, usual e cômodo e percepções novas, muitas vezes desconstrutoras, dessas banalidades, geradas de pontos de vista nunca antes adotados ou pensados. No mais das vezes, esse impacto atinge preconceitos contra grupos divergentes do padrão dominante numa sociedade ou a posturas para com o meio-ambiente e, como eles são fortemente legitimados por forças colossais, como a Igreja, o Estado e os detentores dos meios de produção, esse trabalho consiste em um esforço ingente e nem sempre bem sucedido. O segundo, muito bem dissecado por Richard Dawkins, é a equiparação entre o fundamentalismo religioso e o dito “fundamentalismo ateu”. Como afirmado acima, é muito fácil que qualquer cabeça confunda paixão com fundamentalismo, mas a conceituação deste é clara: manutenção de um comportamento ou de uma opinião, mesmo que todas as evidências se voltem contra sua veracidade, utilidade ou viabilidade. Ora, um religioso fundamentalista afirma que continuará acreditando em Deus ou no criacionismo mesmo que a ciência os refute categoricamente. Já um dito “fundamentalista ateu”, inebriado que está com o posicionamento científico, pode defender ardorosamente uma ideia quando julga que, em certo momento, há mais provas a seu favor do que contra, mas invariavelmente será o primeiro a abandonar sua fortaleza quando a verificação empírica demonstrar o contrário. E isso inclui a existência de Deus ou a vida após a morte.

É simplesmente a divergência de conceitos extremamente enraizados nas mentes da maioria das pessoas e a contrariedade a grandes poderes instituídos que tornam os ateus militantes – em suma, os que não se contentam com o mero abandono das velhas crenças e decidem se bater ativamente contra as injustiças causadas pelas religiões ou pelas ideologias, instituições e práticas relacionadas ou corroboradas tácita ou abertamente por elas – tão rejeitados nos países menos desenvolvidos, bem mais do que os que decidem manter sua opção em segredo ou não botar suas implicações em prática. Eles são vistos como grandes demônios, incitadores da desordem e potenciais agressores físicos e verbais. Na verdade, a condescendência, que aprendem com o exercício da tolerância surgida quando percebem que sua antiga fé não é a única possível, torna-os aptos até mesmo a concordar com a aliança com religiosos progressistas e não fanáticos em busca da realização de ideais nobres, como o fim da miséria e da exploração operário-camponesa. O que está em pauta, em último caso, é o combate a qualquer forma de tirania e de supressão da individualidade e dos meios para uma existência digna e livre.


Bragança Paulista, 4 de junho de 2011.
Levemente alterado a 21 de maio de 2012.