terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

“O que é viver filosoficamente?” (2011)


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NOTA: Este é um dos meus preferidos da série escrita no começo de 2011 e revisada em 2012 pra publicação no blog Materialismo.net, por vários motivos. De linguagem muito simples, é curto, os parágrafos são pequenos e não se lê um estrangeirismo sequer formatado em itálico. É claro, como eu já disse várias vezes, que ele tem enorme influência das matérias com teor marxista de esquerda que cursei na Faculdade de Educação da Unicamp em 2009 e 2010, mas em todo caso sinaliza uma abertura mental e um apreço pelo intelecto que cultivo até hoje. Não tem nada a ver com doutrinação ou imposição ideológica que tanto atribuem às instituições públicas de ensino. Eu até podia não concordar com os professores, ou vice-versa, mas se quisesse conhecer opiniões diferentes, bastava pegar um livro e ler. Estou feliz que este, talvez, seja o texto que mais serve ainda pros dias de hoje, mais até do que os de ateísmo, porque os riscos das redes sociais ainda não tinham sido amplificados. Mas, infelizmente, parece que o Brasil evoluiu ao contrário, ou até pior do que poderia ser o contrário do exposto aqui.



Uma vida guiada pelo espírito filosófico, a alternativa mais saudável, moderna e inteligente para acompanhar a complexidade dos dias de hoje, consiste em três atitudes básicas que se conseguem apenas com muito esforço e que não são compatíveis com soluções messiânicas ou “mágicas”. A primeira é dispor-se ao conhecimento de como funciona o mundo. A segunda é encontrar propósitos pelos quais se possa viver e objetivos que se busque alcançar, ainda que não sejam realizáveis num prazo curto. E a terceira é engajar-se num projeto político de transformação da sociedade, utilizando o máximo possível de competência e instrumental disponíveis. Tais pontos, nessa ordem, levam uns aos outros e não são realizáveis isoladamente.

Os saberes a respeito da natureza e do meio social sempre foram, no que tinham de mais eficaz e essencial, ocultados à maior parte da população por castas fechadas e dificilmente acessíveis, que sabiam do potencial revelador e sublevador desses conteúdos. A lenda bíblica da “árvore do conhecimento do bem e do mal” exemplifica bem essa mentalidade: as pessoas comuns não podem conhecer o que os poderosos conhecem, senão lhes seriam proporcionadas as condições materiais e morais para a exigência de sua libertação e para a autonomia de ação e reflexão. Assim, compreende-se que descobrir os segredos da mecânica da vida natural e humana significa prover a consciência de informações que lhe permitam fazer julgamentos ponderados e empiricamente baseados e tirá-la da ignorância a respeito do que a influencia e cerca. Só se pode alcançar isso com estudos, observações e leituras muito disciplinados, e não por meio da “iluminação” dos conteúdos prontos em nossas cabeças por pessoas ou entes superiores; afinal, o sujeito do processo de conhecimento sempre é um ser humano.

Adquirido um arcabouço intelectual básico, pode-se começar a delinear independentemente metas e motivações que sirvam de guia para a existência. Afinal, a principal condição de humanidade é encontrar um porquê para a vida, já que o cérebro humano não se limita a seguir funções biológicas instintivas, mas transcende-as e, além de produzir seus próprios meios de subsistência, também procura, como animal inatamente inconformado, influir nos acontecimentos que o atingem, abstraindo-os e manipulando essas abstrações. Tal é o funcionamento da cultura e de todas as suas subdivisões, como a língua oral ou escrita, a arte, os rituais sobrenaturais, a vestimenta, a música, os preceitos de convivência e outras manifestações. Por isso se diz que a religião tem como função dar um sentido ao existir; mas, como afirmou Sartre, todas as ideologias são revolucionárias quando nascem e reacionárias quando se consolidam, e a fraternidade espiritual deu lugar ao abuso de poder e ao fim das discussões por meio da imposição dogmática. E aí a filosofia encontra seu papel: dar orientações éticas renováveis e adaptáveis à marcha do progresso e ao surgimento de novos problemas.

Contudo, as aspirações não têm razão de ser se não se cogita colocá-las em prática, ou seja, buscar a modificação das estruturas políticas, sociais, econômicas e culturais conforme padrões de pensamento mais modernos e confortáveis. Obviamente são as necessidades reais que condicionam as ideias de uma época ou de um lugar, e, por isso mesmo, estas devem voltar ao mundo objetivo e cumprir a função para a qual foram criadas. As ondas de mudança são inexoráveis, e o pensamento conservador, buscando manter as estruturas de dominação e privilégio, inculca à maioria da população o conformismo com a situação presente, para que ela aguarde a verdadeira felicidade de um vindouro “paraíso” ou “época de ouro” após a morte ou num futuro distante. A verdade é que a luta por uma sobrevivência melhor não pode ser adiada, pertence ao aqui e agora, e exige que todos usem maximamente suas capacidades, inteligência, energia e força. Tal disposição só pode ser tornada uma “segunda natureza” por meio de prática e tirocínio incessantes, e é impossível, como se sabe, levar a cabo essa empreitada se não se domina o cabedal técnico e lógico legado pelos antepassados, o que, num ciclo, faz o retorno ao primeiro ato da vivência filosófica.

Os cidadãos comuns, em especial os brasileiros, estão acostumados, por motivos culturais e imposições sócio-políticas, a esperar que as soluções para seus tormentos e as respostas para as indagações que lhes são feitas, além de prontas, apareçam “caídas do céu”, o que mina o desenvolvimento do fôlego para a pesquisa e da criatividade e inteligência para a criação própria. É essa lacuna histórica que uma difusão maior da filosofia precisa suprir na educação e nas relações públicas, a fim de acabar com as superstições infundadas e encorajar cada um a tomar seu destino em suas próprias mãos.


Bragança Paulista, 29 de janeiro de 2011.
Levemente modificado a 5 de julho de 2012.