Nesta página esquecida no site do Senado, consegui recuperar uma matéria do Correio Braziliense publicada em 1.º de agosto de 2010, na página 21 da seção Mundo, escrita por Isabel Fleck e intitulada “Lula recua e oferece abrigo a iraniana”. Trata-se do famoso caso da iraniana Sakineh Ashtiani, nascida em 1967 e condenada à morte por apedrejamento pela justiça do então governo autoritário e reacionário do presidente Mahmud Ahmadinejad, cuja reeleição em 2009 já tinha sido acusada de fraude por amplas manifestações que terminaram em repressão. Ashtiani foi acusada ainda em 2005 de ter ajudado a matar seu marido junto com o primo dele, com o qual ela estaria tendo um caso extraconjugal. Pra piorar, ela é da minoria azerbaijana que vive no Irã, o que a deixou mais vulnerável à perseguição, como vimos no caso da curda Mahsa Amini em 2022. O caso foi se arrastando até que em 2007 ela recebeu a condenação capital final, e em 2010 foi lançada uma campanha internacional pra sua libertação. Após o envolvimento de vários políticos ocidentais, a pena de Ashtiani foi enfim comutada pra dez anos de prisão, dos quais ela cumpriu nove até 2014, sendo liberada por “bom comportamento”.
Naquele período, o presidente Lula estava construindo boas relações diplomáticas com ditadores como Bashar al-Assad, Muammar Gaddafi e Ahmadinejad, tomando a correta opção de não entrar em conflito aberto com nenhum país do mundo, mas errando em posar com esses assassinos em fotos amistosas, sorridentes e descontraídas, inclusive com cúmulos de abraços. Como é o caso atual com a Rússia, e como ele não é esquizofrênico nem sádico como seu antecessor, Lula provavelmente não ignora os vários crimes que essa escória comete e se condói sinceramente com as vítimas, mas tenho duas hipóteses: ou ele lê pouco sobre esses assuntos, dado seu desconhecimento de idiomas e a falta de qualidade do material disponível em português; ou, o que acho mais provável, ele não pode desagradar a suas bases partidárias, não limitadas ao PT e que ainda rezam segundo a cartilha da “guerra fria”, pela qual tudo o que faz mal aos EUA faz bem ao mundo: o inimgo de meu amigo é meu amigo... Pra ter uma noção de como agem, vejam a paranoia de Gleisi Hoffmann, que já está metralhando até o Haddad, considerado “liberal demais” no partido!
Pra entrarmos logo no tema, essa falta de tato pra lidar com questões internacionais, que Lula não parece ter resolvido depois de sair da cadeia “mais à esquerda do que quando entrei”, sempre o levou a gafes feias ao comentar abusos de direitos humanos em outras partes do mundo, que são relativamente diferentes dos que se passam no Brasil, já que em tese não vivemos numa ditadura aberta desde 1985. Se era de países que nos interessavam economicamente, como o Irã, a Rússia, a China e a Síria, ou ideologicamente próximos, como a Venezuela, a Nicarágua e Cuba, então, nem se fala! Comentando a atitude de Lula pra com Ashtiani, lembro na época que a Veja meteu o pau por ele a ter tratado de “essa mulher” e sugerido que estaria causando “incômodo” no Irã, quando na verdade era a ditadura teocrática que estaria sendo o incômodo à mulher. Conforme informou também a Folha de S. Paulo na época, o presidente também causou indignação ao comentar cantarolando: “Fico imaginando se um dia tivesse um país do mundo que se o homem trair fosse apedrejado. Eu queria saber quem é que ia gritar: atire a primeira pedra, iá iá, aquele que não traiu.”
Acontece, Molusco, que o assassino do marido de Ashtiani foi liberado da pena de morte após pagar um dinheirão pro filho dela, e mesmo condenado a dez anos de prisão, afirma-se que ele sequer ficou muito tempo na cadeia! E como os registros online do passado sempre são comprometedores, segue o artigo de Fleck, embora meus comentários já tenham ficado maiores do que o próprio... Só ressalto que não quero igualá-lo à quase ditadura por que passamos em 2019-22, mas que, como um chefe democrático, Lula tem todo o dever de ser criticado franca e abertamente. P.S. 1: Ela recebeu as 99 chibatadas, e na frente do filho! P.S. 2: Muito nostálgico o atual esgotão muskiano da internet ainda ser chamado então de “rede de microblogs”, rs.
Em discurso em Curitiba, presidente diz ter pedido a Mahmud Ahmadinejad pela vida de Sakineh Ashtiani, condenada por adultério
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi o primeiro a ceder. Dois dias depois de sugerir que não aproveitaria o canal aberto que tem com o colega iraniano, Mahmud Ahmadinejad, para pedir pela vida de Sakineh Mohammadi Ashtiani condenada à morte por apedrejamento, sob a acusação de adultério, Lula afirmou que conversou com o amigo e ofereceu, inclusive, abrigo à iraniana no Brasil. O presidente disse ainda que, se for eleita, a candidata do Partido dos Trabalhadores (PT), Dilma Rousseff, telefonará para Ahmadinejad em seu nome, para também interceder por Ashtiani. Resta saber se o governo de Teerã vai considerar mais um apelo do colega brasileiro que se junta aos de dezenas de organizações de direitos humanos, celebridades e outros governos, como o do Reino Unido e dos Estados Unidos.
Em um discurso ao lado de Dilma em Curitiba, Lula voltou a dizer que é preciso respeitar as leis e a soberania do Irã, mas destacou que nada justifica um Estado tirar a vida de alguém. “Se vale a minha amizade e o carinho que tenho pelo povo iraniano, e se essa mulher está causando incômodo [no Irã], nós a receberíamos no Brasil”, sugeriu. O Palácio do Planalto não confirmou se o pedido a Ahmadinejad pela vida de Ashtiani teria sido feito em um telefonema recente, mas, há duas semanas, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, entrou em contato com o chanceler iraniano, Manouchehr Mottaki, para pedir o cancelamento da pena da mulher de 43 anos.
Na última quarta-feira, Lula afirmou em Brasília que não cederia aos apelos para falar com Ahmadinejad, expressos na rede de microblogs Twitter, por meio da campanha #LigaLula. Na ocasião, ele disse que, se todo mundo pedir para um país mudar suas leis, “vira uma avacalhação”. Ashtiani está presa desde maio de 2006, acusada de ter traído o marido com o homem que depois o matou. Na época, foi condenada a 99 chibatadas, e, depois, após confessar o crime de adultério, à morte por apedrejamento.
Uma campanha movida por um dos dois filhos de Sakineh, Mohammadi Ashtiani, conseguiu suspender a execução da mãe, prevista para julho, mas não derrubou sua sentença de morte. Ontem, a rede americana CNN divulgou trechos de uma carta que teria sido escrita por Ashtiani, da prisão de Tabriz (oeste do país). No texto, enviado à advogada Mina Ahadi, a mulher agradece todo o apoio da comunidade internacional, e diz que tem medo de morrer. “Senhora Ahadi, diga a todos que tenho medo de morrer. Me ajude a continuar viva para abraçar os meus filhos”, diz Ashtiani. “Muitas noites, antes de dormir, eu penso em como alguém pode estar preparado para jogar pedras em mim, mirando a minha face e mãos?”, diz, na carta.
Um abaixo-assinado virtual pela libertação da iraniana tem quase 142 mil assinaturas, entre elas a do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, segundo o site freesakineh.org [URL atualmente inativa].