sexta-feira, 22 de março de 2024

URGENTE: atentado em teatro russo


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Revisado e aumentado no dia 23 seguinte



Como você já deve estar sabendo por diversas mídias brasileiras ou mesmo estrangeiras – já está passando no Jornal Nacional –, pouco depois das 20h no horário de Moscou (pouco depois das 14h no de Brasília), ao menos cinco homens armados lançaram coquetéis molotov e dispararam em direção a cerca de 6 mil espectadores que esperavam o início de um show da banda de rock Picnic (apesar do nome, ela foi fundada em 1978, em Leningrado, hoje São Petersburgo). Foi na casa de shows Crocus City Hall, localizada na cidade de Krasnogórsk, na província de Moscou, a 25 km da capital federal, e provocou uma correria imediata, desordem e o quase desabamento do teto do prédio.

Até eu escrever este texto, 62 pessoas já tinham morrido e mais de 145 tinham se ferido; na própria Wikipédia em russo, as atualizações são constantes, mas também estou assistindo à cobertura da TV Rain, sediada em Amsterdã, que está fazendo toda uma cobertura especial dedicada ao trágico dia na Rússia. Estão dizendo ser o maior atentado no país em 20 anos, mesmo que antes já houvesse, por exemplo, tomadas de reféns em teatros; mas acredito que a referência seja à tomada da escola de Beslan, na Ossétia do Norte, onde terroristas muçulmanos mantiveram mais de 1100 reféns de 1.º a 3 de setembro de 2004 e, após a intervenção atrapalhada dos militares, 333 pessoas morreram, entre elas 186 crianças. Ainda falta muito a se esclarecer, mas gostaria de trazer aqui algumas reflexões feitas pelos convidados e acrescentar outros dados de minha lavra. O cenário pode ser bem mais complexo do que parece.

Descontando os atentados em metrôs ou explosões isoladas, Vladimir Putin sempre foi reputado como inepto pra combater o terrorismo islâmico doméstico, sobretudo em se tratando de casos com reféns e em se levando em conta a demora pra agir e a indiferença com os frequentes números elevados de vítimas fatais. Não estou fazendo moralismo, estou trazendo fatos: seu desprezo pela vida humana foi magistralmente demonstrado durante o afundamento do submarino Kursk em 2000, quando mal tinha tomado posse após sua primeira eleição direta e deixou 118 marinheiros morrerem no mar ártico de Barents. Face ao despreparo da Rússia pra tal situação, a Noruega ofereceu ajuda no resgate, mas Putin se recusou a voltar das férias e rejeitou o apoio, e quando se deparou com a fúria das mães dos militares, as chamou de “prostitutas pagas pra atuarem como atrizes”.

Em 19 de março, reunindo-se com os altos responsáveis do FSB, o serviço de inteligência corroído por corrupção, despreparo e nepotismo e que não é nem a sombra do velho temido KGB, Putin aludiu a “alertas de atentado” por extremistas nos arredores de Moscou repassados por agentes dos EUA, mas os recusou como “chantagem escancarada”. De fato, no dia 7, a diplomacia americana e de outros países, incluindo os bálticos, emitiram um alerta pra que seus cidadãos evitassem aglomerações nas 48 horas seguintes, e depois as autoridades também conseguiram prevenir o atentado a uma sinagoga. Ironicamente, a porta-voz do Ministério do Exterior, Maria Zakhárova, horas depois do ataque em Krasnogorsk, disse que os EUA estavam se apressando em “desculpar” a Ucrânia, e que se tivessem informações, deviam as compartilhar o quanto antes. Vejam só...

De fato, o reflexo dos publicistas e políticos mais doentios foi culpar o “regime neonazista de Kyiv”, e o falhósofo Aleksandr Dugin, queridinho de alguns universiotários idiotas da Banânia, incitou a “descarregarem sobre a Ucrânia o poder de fogo existente em todo o armamento da Rússia”. Esse delírio não passa disso, um delírio, e a não hipótese deve ser jogada logo ao lixo. Porém, a esse respeito, outros fatos são interessantes: também hoje, 22 de março, o exército russo lançou o maior ataque à infraestrutura energética ucraniana em meses, curiosamente logo após a reeleição fake do genocida. Dmitri Peskóv, porta-voz do Kremlin, cometeu uma espécie de “lapso” ao dizer a um jornalista que a Rússia se encontrava “praticamente em estado de guerra” com a Ucrânia após dois anos de “operação militar especial” (jura?). Uma nova onda pós-eleitoral de mobilizações militares estaria sendo planejada pra reunir uns 300 mil combatentes, o que certamente causaria indignação geral na população. Enfim, o Estado russo está cada vez mais autoritário, repressivo e açambarcador.

A segunda hipótese aventada foi uma armação do próprio FSB por razões diversas, algo que além de estar dentro de suas capacidades, bate com suspeitas já levantadas em eventos passados e condizentes com o tratamento da população pelo Kremlin como material descartável. Voltemos de novo no tempo: na década de 1990, o calcanhar de Aquiles da unidade russa era o Cáucaso do Norte, pertencente ao país, que era todo um barril de pólvora, mas cujo epicentro era a Chechênia, que além de lutar pela independência, queria levar junto as atuais repúblicas da Inguchétia e do Daguestão. Estratégica, a região do Cáucaso foi duríssima pro Império Russo conquistar, e como sua metade Sul já estava perdida (com a independência da Armênia, Geórgia e Azerbaijão soviéticos), o resto deveria se manter. Além disso, o embrião do terrorismo islâmico internacional moderno já dava as caras no Cáucaso, e logo foi fixada na cabeça do russo médio a associação “checheno = terrorista”, sobretudo com os atentados já recorrentes na Rússia eslava e com a primeira guerra local perdida por Borís Iéltsin.

Putin jamais seria alguém na vida sem a segunda guerra da Chechênia. Até então desconhecido do grande público, ele foi escolhido primeiro-ministro pelo frágil presidente em 1999, sob a promessa de “caçar os terroristas até nos vasos sanitários”. Sua “solução” foi simplesmente meter o louco em Grózny, capital chechena, e a bombardear sem fazer muita distinção entre civis e combatentes. Isso faria escola na Ucrânia moderna... Inclusive, em setembro daquele ano, atentados em três cidades diferentes mataram mais de 300 pessoas em prédios residenciais, e embora a autoria fosse atribuída a jihadistas, houve muitas acusações, jamais comprovadas, de que o FSB podia os ter forjado como desculpa pra aquela ofensiva em larga escala. Mesmo assim, seu “pulso firme” o ajudou a ser eleito em primeiro turno pela primeira vez, em 2000. Somente um acordo com Ramzán Kadýrov, implantado como um ditador-fantoche ainda mais brutal, encerraria os combates anos depois. E pra variar, passado o tempo, Putin acusaria os EUA de terem fomentado o terrorismo no Cáucaso ao invés de ajudar a Rússia a combatê-lo...

Os próprios especialistas já ouvidos (sem ser o próprio governo ucraniano, claro) não acham provável um envolvimento do FSB, ainda mais do jeito que a coisa se passou e logo depois da eleição de fachada. Porém, o que se poderia esperar de uma instituição mais baseada na herança dos postos de pai pra filho do que no mérito, e que garantiu a Putin que sua invasão seria recebida festivamente na Ucrânia? Além disso, se indicou também que as poucas forças da ditadura estavam muito concentradas em vigiar e prender dissidentes políticos, especialmente os apoiadores do finado Navalny, e os falsos “extremistas” do chamado “movimento internacional LGBT”. Somando-se a atenção internacional totalmente voltada pra Ucrânia (e Gaza), a menor brecha poderia ser aproveitada. E pode ter sido.

Os EUA preveniram a Rússia de que o ataque poderia vir do Daesh, como prefiro chamar o “Estado Islâmico” (ou ISIS, ISIL), e de fato, nas últimas horas a matança foi reivindicada no grupo do Telegram (como deixam, meldels?) mais especificamente de um braço chamado “Daesh do Khorasan” ou “ISIS-K”, isto é, que atua no Afeganistão. O (Grande) Khorasan (aportuguesado de diversas formas) é um nome derivado da língua persa média, que ao longo da história designou várias porções de território em parte da Ásia Central. De cultura iraniana (ou seja, persa, curda e outras aparentadas), equivalia mais ou menos à antiga região da Pártia (Parthia) na era pré-islâmica. Hoje, recobre todo o Tajiquistão (um povo persa), a maior parte do Afeganistão (norte e centro), parte do leste do Irã (onde algumas províncias levam “Khorasan” no nome), mais da metade do Turcomenistão (leste e centro), o centro e o leste do Usbequistão e um pedacinho fronteiriço do Quirguistão. Alguns grupos de língua pashto reivindicam “Khorasan” como o verdadeiro nome do Afeganistão e como o espaço por excelência daquela língua.

Claro que às vezes a fiabilidade desse tipo de anúncio é a mesma do seu Madruga assumindo a culpa do Chaves por ter comido os churros da dona Florinda. Mas em se tratando do Afeganistão, e mesmo do Daesh em geral, muitos fios podem ser ligados que levem à referida brecha do FSB. Curiosamente, Talibã e Daesh se detestam, uma das razões sendo que o primeiro é nacionalista afegão, e o segundo é “internacionalista”, visa ao califado mundial. E quando terroristas se detestam, seu primeiro reflexo é se matarem mutuamente, o que é o caso do Daesh do Khorasan, que ainda atemoriza o Afeganistão, classificado nos últimos dias como “o país mais infeliz do mundo”. A Rússia reconhece ambos como organizações terroristas, mas o chanceler Sergéi Lavróv já deu passos de “normalização” desde 2021, participando de reuniões internacionais com os representantes de Cabul. Óbvio que o Daesh não gostou nada.

Mas não para por aí. Após a recusa do Ocidente em intervir na guerra civil da Síria, a Rússia também ajudou a combater o Daesh aí, mas ao custo de transformar o ditador Bashar al-Asad num boneco de Moscou e de submeter a população civil, sobretudo opositores, a bombardeios indiscriminados. Igualzinho em Grozny e em Mariúpol... Al-Asad também é amiguinho do Irã, cujo regime terrorista igualmente fornece armas pra Putin matar ucranianos. Óbvio igualmente que o sunita Daesh odeia Teerã xiita, e essa aproximação não foi bem vista, ainda mais que esse país foi algumas vezes alvo de atentados do “califado”.

Células terroristas, que não são necessariamente grandes campões de treinamento, sempre foram espalhadas pela Ásia Central e pelo interior da Rússia, e de difícil sondagem, podiam ser ativadas a qualquer momento. E com as sanções impostas pelo Ocidente, e com a necessidade de desfrutar de mão-de-obra braçal barata, a Rússia tem sido generosa com a entrada fácil de imigrantes do famigerado “Çu Grobá”, incluindo países vizinhos de maioria islâmica. A porta não podia estar mais escancarada.

Quer mais imbróglio? O Hamas expressou suas “condolências” pelo atentado em Krasnogorsk, e seus representantes já se encontraram várias vezes com altas autoridades russas, mesmo depois dos atentados de Sete de Outubro, sem contar que Putin parece ter virado “por default” um arauto da causa palestina, só pra fazer birra ao Cumpádi Uóxto. Lembremos que a “Resistência”, tão nacionalista quanto os Talibã e apoiada por Irã e Hezbollah (mesmo não sendo xiita como estes), é execrada pelo Daesh (quem não é? Rs). Uma das testemunhas, pelo menos a única desse gênero, teria ouvido os atiradores no teatro gritando “Pelo Artsakh!”, ou seja, o “Nagorno-Karabakh” armênio que foi totalmente reanexado pelo ditador azerbaijano Ilham Aliyev.

Nikol Pashinyan estaria buscando uma vingança porque os soldados “pacificadores” russos, enviados ao enclave após a guerra de setembro de 2020, teriam simplesmente observado de braços cruzados os armênios quase morrerem de fome após o bloqueio do corredor de Lachin por falsos ecoativistas? Certamente não: embora o secularismo seja empurrado goela abaixo dos azerbaijanos e as mulheres sejam proibidas de usar hijab e similares em público (caso quase único no islã moderno), nominalmente a maioria da população se identifica como xiita, sem ser realmente praticante. Além disso, o anúncio do Daesh do Khorasan também dizia que eles queriam “matar cristãos”, embora o Crocus City Hall não fosse exatamente a Canção Nova e o grupo Picnic não fosse exatamente o Diante do Trono... Junte perseguição à religião com xiismo nominal pra ver no que dá.

É isso por enquanto, e se eu achar algo relevante pra ser publicado à parte, retorno. O mais engraçado é que o valentão Putin, ao invés de utilizar suas habilidades de judô, parece estar escondido embaixo da mesa e não deu nenhuma declaração, sequer de condolências, e até a tarja no noticiário que costuma ter a indicação “V. PUTIN” está há horas marcada como “D. PESKOV”, com a mesma mensagem dizendo que o presidente “está acompanhando e recebendo todas as informações necessárias”. Este print é de 23h55 min, e inclusive a mensagem de baixo informa que o teto do auditório onde ocorreu o atentado desabou:



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