domingo, 19 de março de 2023

Ekaterina Kotrikadze: mídia anti-Putin


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Ekaterina (ou Katerina) Kotrikadze é uma repórter russa e georgiana nascida em 1984, que no momento está exilada em Riga, capital da Letônia e uma das cidades em que funcionam os estúdios do canal de televisão em língua russa em que ela trabalha, o “Dozhd” ou TV Rain, porque significa exatamente “chuva” em russo. Antes mesmo da invasão massiva à Ucrânia, em fevereiro de 2022, o canal já tinha sido declarado “agente estrangeiro” (inoagént), conforme a repressiva legislação vigente na Rússia, e com a proibição de cobrir honestamente a agressão, a estrutura e a equipe se exilaram em Riga, e depois parcialmente em Amsterdã, capital dos Países Baixos. Perto do fim de 2022, também a própria Kotrikadze foi declarada “agente estrangeira” pelo Kremlin, rótulo que outros colegas do Dozhd também carregam.

Fundado em 2010, o canal era um dos poucos independentes que ainda restavam por volta do agravamento da guerra, e depois até mesmo a histórica rádio Ekho Moskvy (Eco de Moscou) fechou, porque não tinha como se manter. Historicamente, o Dozhd como um todo e Kotrikadze em particular são opositores a Putin, e a mãe da repórter morreu num atentado a bomba a um prédio residencial em Moscou, em 1999. Na época, as mortes foram atribuídas a terroristas chechenos, mas há quem diga que quando Putin chegou ao poder (naquele ano, como primeiro-ministro), o FSB, que o nanico antes chefiava, teve a coragem de promover atentados contra os próprios russos só pra depois culpar os chechenos, comover a população e lançar ofensivas cada vez mais agressivas à região separatista. De fato, sabe-se que a nova intervenção na Chechênia foi muitíssimo mais violenta e custou muitas vidas inocentes, um modus operandi que, segundo muitos, estaria hoje se repetindo na Ucrânia. Foi enquanto investigava sobre o assunto que a jornalista Anna Politkovskaia foi assassinada no próprio prédio onde morava, em 2006, sem que o mandante fosse encontrado.

Kotrikadze é casada com outro repórter do Dozhd, Tikhon Dziadkó, ele mesmo também personagem do meme “Meu Semion”, talvez datado de 2014 e quando ele queria dizer “meu colega Semion”. Pra quem entende russo, pode notar que ela tem uma articulação muito boa e domina os assuntos sobre os quais fala, como por exemplo a política internacional, sobre a qual apresenta um programa de mais ou menos uma hora e meia a cada semana. Mas uma de suas características mais engraçadas é fazer certas caras de brava, indignada e odiosa que, sobretudo se são pegas quando paramos o vídeo e ficam ainda mais incomuns, dão ótimos memes. Foi o caso da primeira imagem aqui vista, e desta também em dois momentos diferentes:


Uma das primeiras vezes em que ela apareceu pra uma ampla audiência foi na conferência anual de imprensa de Putin no fim de 2013. Ela era então repórter do canal de notícias RTVi, que também transmite hoje no YouTube e do qual ela seria redatora-chefe por algum tempo. Trabalhando então em Nova York, que ainda hoje é a sede do canal (que não faz oposição direta ao Kremlin), Kotrikadze pergunta a Putin como estão suas relações pessoais com Barack Obama, então presidente dos EUA, e o que ele acha do choque que teve Angela Merkel, então chanceler da Alemanha, ao descobrir que tinha seu telefone grampeado pelos serviços secretos de Washington. Reitero que na época, descobriram o mesmo tipo de grampo no telefone de Dilma Rousseff, o que por um tempo azedou suas relações com os EUA, mas aqui estou só resumindo o diálogo, sem transcrever nem traduzir. Em 2013, Edward Snowden também tinha se refugiado na Rússia pra fugir das punições estadunidenses após o caso Wikileaks, mas Putin tergiversa e não fala especificamente nem sobre Snowden, nem sobre sua relação com Obama.

O essencial é que ele respondeu não ser impressionante esse tipo de espionagem, sobretudo numa época em que tudo estava submetido ao “combate ao terrorismo”, e até brincou que “falo com propriedade porque de espionagem eu entendo” (ou algo assim). Ele se referia ao fato de ter sido agente do KGB soviético na antiga Alemanha Oriental até a queda do Muro de Berlim, e depois ter subido pro topo de seu sucessor, o FSB, usando seus serviços pra prefeitura de São Petersburgo, sua cidade natal, como trampolim político.


O quadro com aquele rosto mal-encarado que deu origem a “meu meme” sobre o stalinismo vem de uma das edições diárias do boletim informativo Aqui e Agora (nada a ver com Gil Gomes ou punitivismo midiático, rs), apresentado por Kotrikadze no último 2 de fevereiro. Ela informa que um busto de Stalin, circundado por um do marechal Zhukov e outro do marechal Vasilievski, tinha sido inaugurado numa praça pública de Volgogrado, cidade que até 1961 se chamava Stalingrado e onde, 80 anos antes, os soviéticos venceram uma das batalhas mais importantes contra os alemães, a qual mudou o curso da 2.ª Guerra Mundial. O ar é mesmo nostálgico, com soldados vestidos à soviética, o hino da Rússia tocado com o pensamento no hino soviético (ambos, de fato, têm a mesma melodia) e os senhores dançando sob uma canção daqueles tempos. Com expirações de inconformismo, Kotrikadze lamenta que tenha sido, desde o fim da URSS, o primeiro monumento ao ditador construído por um órgão de poder (isto é, a prefeitura), e não por iniciativa particular de comunistas ou veteranos de guerra.


Mas talvez o momento mais triste que se possa ter conhecido da carreira de Kotrikadze foi durante a longa transmissão especial do Dozhd sobre o primeiro aniversário do 24 de Fevereiro, em que ela entrevista a jornalista Anna Gin, uma moradora de Kharkiv (Kharkov, em russo) que sempre escreveu e trabalhou em russo, sua língua materna. Ela poderia ser considerada uma dessas pessoas que Putin dizia estar salvando do “regime nazista de Kyiv”, mas logo nos primeiros dias de bombardeios, ela foi obrigada a fugir com os filhos até Dnipró e não pôde levar os pais, muito idosos (eles mesmos quiseram ficar), seu pai inclusive com uma das pernas amputadas. O perfil de Gin no Facebook se tornou um diário naquela cidade tipicamente russa, e nele lemos como após um bombardeio perto do apartamento dos pais, sua mãe sofreu um derrame que, logo depois, a fez falecer. Dias depois, seu pai também morreu, mesmo ela tendo voltado a Kharkiv após a doença da mãe.

Kotrikadze quase não pôde conter o choro, e dá até dó de ver como ela se abala muito, provavelmente se lembrando da mãe morta no atentado de 1999 e não tendo se preparado psicologicamente pra digerir a história. Ela passou o resto do programa com o ar choroso, mesmo não tendo caído em lágrimas, e logo depois da vinheta que encerra a entrevista, esclarece que estava sendo muito difícil ser russo durante a guerra. Não vou traduzir literalmente, mas Kotrikadze diz, por exemplo, que o trabalho dos jornalistas quase se impossibilitou porque em muitos países o passaporte russo não é aceito, sobretudo na Ucrânia, onde se deveria fazer a cobertura de campo. Além disso, aumentava a responsabilidade dos canais independentes exilados, já que na Rússia praticamente só é contada a versão mentirosa de Putin e que só os canais estatais ou pró-Kremlin têm livre curso.


Agora um meme curto mais leve, rs. Em 21 de junho, entrevistando o jornalista investigativo búlgaro Khristo Grozev, que revela os podres do Kremlin e toda sua corrupção evacuada pro exterior, Kotrikadze se impressionou com uma informação dada e soltou: “Ух ты! Как это... как это интересно!” (Ukh ty! Kak eto... kak eto interesno!), ou seja, “Puxa! Como isso... como isso é interessante!” Não é o suprassumo do humor, mas pode ser usado fora de contexto em várias situações!


E pra quem tem curiosidade de ver Kotrikadze falando em georgiano, o que nem eu também tinha visto antes, ela deu esta entrevista pro canal Droeba em 25 de junho, na sequência do motim fracassado de Ievgeni Prigozhin e seu grupo mercenário Wagner:


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