quarta-feira, 3 de abril de 2019

Viabilidade e utilidade do Estado judeu


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NOTA: Sei que o tema deste artigo, em cujo arquivo está marcado 29 de maio de 2011 como data da última alteração, ainda hoje é polêmico e incomoda sensibilidades. Mas como ele tem tudo a ver com nossa atualidade brasileira e mundial, resolvi o republicar, fazendo aqui as devidas explicações. Nunca tive a opinião da esquerda extremista, de que o Estado de Israel “deveria ser destruído”, ou ao menos nunca desejei usar essas palavras. Meu foco, como sempre muito conciliador, foi justificar a possibilidade de transformar a Palestina num espaço não controlado por apenas um grupo político-religioso, dada a fragilidade do velho conceito de Estado-nação. Como vemos, apesar dos abalos, Netanyahu ainda é premiê israelense, e os ataques obscurantistas que citei no início se agravaram ainda mais. É paradoxal, mas no início do governo Dilma Rousseff jamais eu imaginava que no futuro teríamos um governo totalmente centrado em pautas cristãs e caudatário da política estadunidense no Oriente Médio. Segue o texto com poucas alterações redacionais.



Eu poderia falar da abominável intimidação política que censurou o “kit anti-homofobia” das escolas públicas, mas não domino bem as discussões sobre a natureza psíquica e biológica da homoafetividade, por isso decidi abordar política internacional. Meu argumento da vez é que, diante da ridícula intransigência do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu na questão palestina, confesso que não acho o Estado judeu atual viável sem o uso da força nem útil para o conjunto da humanidade. Ele é uma ameaça à paz na região e baseia-se numa forma ultrapassada de modelo nacional.

Como surgiu o atual conceito de Estado nacional? Até o século 19, os grandes impérios não eram baseados nos chamados “grupos étnicos”, mas na fidelidade de seu mosaico cultural ao domínio do soberano. É claro que Portugal, já no século 12, exemplifica o primeiro Estado nacional, mas não sob o mesmo pretexto da França e das recém-unificadas Itália e Alemanha. Ao longo do século 19, forjaram-se as ditas “identidades nacionais” ou “raciais”, compostas artificialmente de elementos como o biótipo, a língua, a história, a música, a religião, entre outros. Daí surgiram os movimentos que procuravam estabelecer territórios fixos para essas pretensas etnias, favorecidos, no início do século 20, pela queda dos grandes impérios, como o otomano e o austro-húngaro. O primeiro problema era óbvio: quem não pertencesse à etnia dominante não tinha direito à nova cidadania, o que motivou limpezas étnicas e deportações em massa. E ainda, os traços legitimadores citados acima nem sempre coincidiam, e a própria língua, por exemplo, era mais uma utopia literária do que algo usado pelo povo. Hoje em dia, com o contato frequente entre culturas e a internacionalização do capital, esse modelo esgotou-se, e as guerras em nome dessas identidades não atraem mais nossos jovens poliglotas, informados e de mente aberta.

O caso de Israel é mais complicado, porque a identidade judaica tradicional não tem a ver com língua, história, música ou cor da pele, dada a grande dispersão geográfica dos judeus, mas com algo tido como intocável pelo Ocidente: a religião. Ela foi a única coisa, e ainda assim não unanimemente, que os uniu em dois mil anos de diáspora. No mesmo século 19, iniciou-se o movimento sionista para forjar uma identidade judaica nacional e lutar por um Estado próprio na tão sonhada Palestina. Esta era, então, uma colônia britânica, e para lá muitos judeus começaram a migrar, convivendo em relativa paz com os árabes, porém com certas explosões conflituosas quando os nativos se chocavam com os colonizadores. Com o desmonte dos colonialismos a partir dos anos 1940, estava claro que ingleses e franceses perderiam o rico e estratégico Oriente Médio, inclusive a Palestina, fonte de água e de muita história. Não creio que a comoção com o Holocausto e o lobby sionista nos países ricos tenha sido a causa principal, mas caiu do céu para essas grandes potências, que viram na criação de Israel uma oportunidade para perpetuar uma base frágil, pois cercada de vizinhos hostis, mas bem localizada e armada até os dentes. Já conhecemos bem o histórico de guerras, mortes, desigualdade e exílios após 1948 para que os listemos novamente, mas a longa agonia dos árabes palestinos nos dá o que pensar sobre os falíveis motivos dessa discórdia.

Obviamente há muitos interesses ocultos, fora e dentro de Israel, para deixar as coisas como estão, mas a principal arma de guerra de judeus e palestinos, sem a qual eles podiam facilmente se pacificar, não é a política ou a cultura, mas o fundamentalismo religioso cego, origem de muitos ódios insolúveis no planeta. Primeiramente, lembremos que o hebraico moderno é uma invenção de fins do século 19 e início do 20, uma atualização do hebraico antigo, língua bíblica que não suplantara o iídiche, o ladino ou as línguas locais no cotidiano dos judeus do mundo. Mesmo a razão religiosa para se fundar um país não procede, pois como reger uma vida social tão complexa e diversa por mitos de veracidade impossível escritos há mais de 3000 anos? Da mesma forma, faz sentido que muçulmanos queiram a exclusividade da Palestina apenas por causa da longa permanência ou porque o profeta Maomé fez uma improvável ascensão aos céus na Cidade Santa? Não é à toa que as brigas não terminam, enquanto judeus e árabes poderiam viver muito bem juntos, regidos por um Estado não nacional ou binacional que concedesse direitos iguais a todas e todos independentemente de sua formação cultural e permitisse a livre circulação por qualquer uma das áreas de Jerusalém, a capital unificada desse novo território. Para se ter uma ideia do absurdo, comparemos com o conflito entre sérvios, croatas e bósnios, para o qual a recente prisão de Ratko Mladić pode ter sido um feliz amenizador: povos de mesma língua, história e tradições, separados, todavia, pelo inglório fato de serem, respectivamente, ortodoxos, católicos e islâmicos, divisão sem a qual suas “nacionalidades” não teriam razão de ser.

A superação desses exclusivismos e dessas fés embaçadas ajudará palestinos e israelenses a conviver em harmonia sem se irritar com as diferenças alheias. Não que devam abandonar suas crenças, mas ao menos mantê-las no foro privado, não usá-las como instrumento político e resolver por si sós suas discordâncias, como fizeram recentemente os grupos palestinos Hamas e Fatah, sem a ingerência de países e agentes econômicos poderosos o suficiente para coordenar a situação conforme seus interesses particulares. O Brasil pode dar o exemplo da paz entre diversos grupos que se unem para a construção do bem comum. O que esperamos, contudo, é que não soframos a mesma sorte da Palestina tendo rixas alimentadas por forças externas que desejam apenas dilapidar nosso patrimônio natural e material.