quinta-feira, 2 de maio de 2024

Cleptofascismo, o regime de Putin?


Link curto pra esta publicação: fishuk.cc/cleptofascismo

Kirill Rogov, diretor do site Re: Russia, uma plataforma de oposição cujos textos podem ser lidos em inglês, publicou em 18 de março de 2024, na seção “Analytics” (Análise), o artigo “87% de ditadura: constitucionalidade fictícia, cleptofascismo e filas de protesto”, disponível em russo e em inglês, língua da qual, porém, resolvi traduzir. Demorei muito pra ter tempo de publicar, e depois passei no Google Tradutor, tendo cotejado apenas com o “original” em inglês (o qual também acredito ser fiável). Mas o mais importante é trazer ao público que lê português – devo estar sendo o primeiro a fazer isso – o conceito de cleptofascismo, como Rogov chama a ideologia, a seu ver ad hoc (isto é, pra atender a uma exigência pontual), na base da ditadura de Vladimir Putin.

A seu ver, o Kremlin mistura hoje a exaltação patriótica e belicosa com um ódio irracional ao “Ocidente Coletivo” e um sistema todo baseado em corrupção generalizada, compadrio econômico-empresarial e fraude eleitoral. Rogov se detém na questão da “fraude eleitoral”, pois ele afirma que serve como legitimação aparente do regime, demonstrando por vias formais um apoio popular que na verdade não existe. É interessante que o Turcomenistão, antiga república soviética e uma das ditaduras familiares mais fechadas do mundo, aparece como exemplo de país em que resultados próximos de 100% são forjados pra passar a imagem de (quase) unanimidade, igual o Partido Ba’ath na Síria e no Iraque. No Brasil, temos vários exemplos a nos espelhar na própria América Latina, como Venezuela e Nicarágua (com El Salvador se encaminhando) – já que em Cuba o presidente é eleito indiretamente. Mas há vários playgrounds de ditador que ainda não sofreram golpe de Estado na África, como os Camarões de Paul Biya, a Ruanda de Paul Kagame, a Eritreia de Isaias Afwerki e a Guiné Equatorial de Teodoro Obiang.

Isso não está no texto, mas os analistas liberais exilados da Rússia dizem que Ramzan Kadyrov estaria fatalmente doente, mas que não interessaria a Putin criar na Chechênia uma sucessão familiar. Segundo eles, com base no terror aberto, Don-Don já teria cuidado de submeter completamente a antiga república separatista, mas agora todo o país estaria na mesma situação, com o clima de guerra, resultando na “kadyrovização” nacional e, por isso, tornando inútil um excêntrico excepcional em Grozny e bastando outro boneco mais alinhado ao putinismo puro. E foi justamente nas regiões mais atrasadas e autoritárias que Putin sempre obteve os maiores resultados, inclusive na Chechênia, inclusive em 2024.

De resto, não incorporei os mesmos gráficos que aparecem no site original e retirei algumas referências a outros artigos que apareciam no meio do texto, sem por isso causar qualquer dano ao conteúdo.

____________________


O resultado eleitoral “estilo turcomeno” nas “eleições presidenciais” da Rússia visa consolidar a transição do regime de Putin a uma ditadura sob condições de “constitucionalidade fictícia” decorrentes das mudanças inconstitucionais à Constituição realizadas em 2020. A guerra contra a Ucrânia tornou-se uma ferramenta crucial, permitindo ao regime atingir o nível de repressão necessário para suprimir a resistência da oposição, garantir este resultado e formular um novo quadro ideológico ad hoc para o regime, que pode ser definido como “cleptofascismo”: uma mistura de motivações corruptas e militarismo antiocidental agressivo. Como resultado, a operação iniciada em 2020 para prolongar a presidência de Putin levou a uma transformação profunda do próprio regime, que em sua forma atual desviou-se muito das expectativas e percepções do homem comum russo, especialmente da geração de russos entre os 20 e 40 anos de idade. Guerra, repressão e fraude permitiram ao regime alcançar um resultado “turcomeno” nas eleições presidenciais, mas ainda não transformou a Rússia em um Turcomenistão, como evidenciam as filas de protesto durante a campanha. A estrutura social da sociedade russa, formada durante as décadas anteriores, nada tem a ver com a que sustenta autocracias estáveis. E este fato põe em causa o êxito da transformação sociopolítica executada por Vladimir Putin na Rússia.

As eleições cujo resultado proclamado foi de 87% dos votos supostamente dados a Vladimir Putin foram as primeiras ao “estilo turcomeno” abrangendo toda a Rússia. Tal resultado é uma indicação confiável de que o país é uma ditadura.

Como já se escreveu muitas vezes, há dois tipos principais de regimes autoritários. O primeiro apoia-se substancialmente em eleitores transformados em “supermaioria” por meio da manipulação administrativa, captura das mídias, restrição da concorrência e fraudes circunscritas. Nesses regimes, o candidato no poder geralmente recebe 60-70% dos votos. Ao mesmo tempo, a oposição existe parcialmente durante as eleições e, pelo menos, é legal; o regime não recorre à repressão sistemática, à censura total ou a campanhas ideológicas massivas.

Um indicador do segundo tipo de autocracias é quando o candidato do governo nas eleições ganha entre 80% e 99%, revelando que o regime não sente apoio suficiente “de baixo” para suas políticas e, portanto, deve recorrer a formas duras de pressão: repressão sistemática, interdição da oposição, campanhas de doutrinação ideológica dos cidadãos e controle ideológico da esfera pública, bem como a remoção de instrumentos de fiscalização pública das eleições. Enquanto o primeiro tipo de eleições visa exagerar o apoio real da população ao regime, as eleições “estilo turcomeno”, em vez disso, demonstram a falta de oportunidades para a oposição e a sociedade oferecerem qualquer resistência ao regime. É um equilíbrio de poder completamente diferente, ao qual se enquadra perfeitamente a definição de “ditadura”.

Três fatores garantiram o resultado “turcomeno” de Putin em 2024: a destruição da capacidade organizativa da oposição por meio da repressão sistemática e bastante dura, da falta de controle sobre a apuração dos votos e da votação forçada organizada por meio da pressão sobre os eleitores em seu local de trabalho.

“Constitucionalidade fictícia” – No entanto, uma compreensão do significado das primeiras eleições “estilo turcomeno” de Putin ficaria incompleta sem considerar o fato de que essas também foram suas primeiras eleições sob condições de “constitucionalidade fictícia”. Nesse sentido, marcam o ápice do período de transição: a transição do regime russo do autoritarismo relativamente leve do final da década de 2000 e da primeira metade da década de 2010 para uma ditadura consolidada, tentando compensar sua deficiência constitucional com um resultado numérico.

Tendo sido eleito para seu último mandato constitucional em 2018 com um resultado intermediário de 77%, Vladimir Putin começou quase imediatamente a preparar-se para uma operação de extensão de seus poderes presidenciais. Na ciência política, tal operação é geralmente chamada de “continuismo” (em espanhol, “extensão” ou “continuidade”: a prática de ampliar os poderes constitucionais ganhou difusão originalmente na América Latina). De 1990 a 2019, houve no mundo todo 66 tentativas de burlar restrições constitucionais aos mandatos presidenciais, sendo 20 na antiga URSS, 34 em países africanos e 12 na América Latina. Contudo, apenas 39 de todas as tentativas foram bem-sucedidas. A capacidade de um autocrata emendar a constituição “para si mesmo” é um indicador importante do nível de controle alcançado pelo regime sobre o campo político e o processo eleitoral.

Em 2020, Vladimir Putin passou apenas parcialmente nesse teste. A fim de aprovar a alteração para ampliar seus poderes, ele teve de violar o procedimento exigido para mudar a Constituição. A principal emenda que zerava os mandatos de Putin foi afogada em um mar de cerca de 200 alterações que foram, todavia, aprovadas por uma única lei. Para dar maior legitimidade a esse procedimento inconstitucional, também foi necessário conceber uma forma de “voto popular”, que não existia na legislação. Diferente de um referendo sobre uma nova constituição, que ser aprovado por pelo menos 50% de todos os eleitores, esse “voto popular” não implicou nenhuma restrição. Ou seja, o procedimento de adoção das emendas parecia-se em parte com o procedimento de adoção de uma só emenda, em parte com o procedimento de adoção de uma nova constituição, mas não se igualava totalmente com nenhum dos dois.

A violação das exigências constitucionais indicava certa falta de confiança do regime em suas capacidades. Além disso, a votação foi realizada no meio de uma pandemia, a qual serviu de pretexto para as autoridades violarem muitas regras eleitorais, como foi o caso do agendamento de vários dias para as votações. Como resultado, a análise dos resultados oficiais do “voto popular” de 2020 mostrou uma mudança radical nas práticas eleitorais. Enquanto nos 12 anos anteriores a porção de votos anômalos (fraude) identificados por métodos estatísticos oscilou entre 14% e 23% dos votos totais, em 2020 esse número disparou para 37%. Significa que provavelmente a votação de 2020 não contou com os 74,2 milhões de eleitores anunciados, mas com cerca de 53 milhões (menos de 50% de todo o eleitorado) e não mais de 36,5 milhões (33% de todo o eleitorado) votaram a favor das emendas.

Porém, alterar a constituição foi apenas a primeira fase da operação de continuismo. A segunda exigia obter um resultado convincente em eleições com falhas constitucionais. Pesquisas sociológicas na época das emendas constitucionais em 2020 mostraram que as parcelas dos que apoiavam e não apoiavam a ampliação do número de mandatos eram aproximadamente iguais. Igualmente, o percentual dos que gostariam ou não de ver Putin como presidente novamente em 2024 foi aproximadamente igual, conforme as pesquisas. Além disso, entre as camadas mais jovens (18-39 anos), a porção dos que não queriam ver Putin novamente como presidente era superior a 50%, enquanto a dos que queriam era inferior a 40%. Naquela altura, as projeções para as eleições de 2024 pareciam muito incertas.

Vale notar que as primeiras tentativas de matar Alexei Navalny ocorreram quase imediatamente após a aprovação das “emendas”: primeiro, em inícios de julho de 2020, e depois, em fins de agosto. Porém, Navalny não só sobreviveu e investigou seu próprio assassinato, mas também lançou um filme investigativo sobre o palácio de Putin, que foi visto mais de 100 milhões de vezes na primeira semana. A aprovação de Putin alcançou então mínimos históricos, e 20% dos entrevistados afirmaram apoiar Navalny.

Essas circunstâncias e a crise eleitoral repentina em Belarus indicavam que o nível de repressão do regime era totalmente insuficiente para garantir um resultado convincente sob condições de constitucionalidade fictícia. Após a prisão de Navalny em janeiro de 2021, começou uma campanha de perseguição contra as estruturas sistêmicas da oposição e da sociedade civil: a Fundação Anticorrupção foi declarada organização extremista e seus coordenadores regionais foram presos, enquanto pessoas e organizações foram declaradas em massa como agentes estrangeiros e a Organização Memorial foi forçada a fechar. Mas só quando a guerra começou Putin pôde finalmente implementar um vasto leque de medidas de repressão e censura visando avançar para os padrões do “estilo turcomeno”. Os resultados das pesquisas refletem claramente as mudanças na atmosfera pública (quaisquer que fossem os mecanismos que as assegurassem).

A morte de Alexei Navalny na prisão, exatamente um mês antes das eleições presidenciais, fecha simbolicamente esse período de transição. No fundo, foi mais uma demonstração das capacidades do regime, que não temeu dar esse passo às vésperas do pleito. Ao mesmo tempo, como que traçou uma linha entre o período de combate à oposição de Navalny e o estabelecimento da ditadura, que se estendeu de 2018 a 2024 por todo o período de transição de Putin. O assassinato de Prigozhin mostrou que a morte de um “inimigo de o regime”, envolta em alguma incerteza, tem um efeito mais paralisante do que mobilizador sobre seus apoiadores. Estão prontos para o luto, mas não para o protesto e a condenação inequívoca de Putin por sua morte.

O “cleptofascismo” como novo quadro para o regime – Aparentemente, o cenário inicial para as eleições de 2024 baseou-se no êxito imediato da campanha militar na Ucrânia, repetindo as conquistas de 2014. Dentro desse cenário, até 2024, esperava-se que os efeitos da invasão e da nova ocupação já tivessem sido amplamente normalizados e suavizados. Porém, as derrotas na campanha militar e a resistência conjunta da Ucrânia e do Ocidente mudaram a trajetória do novo mandato.

Isso exigiu a mobilização da sociedade e das elites em posições de uma doutrina ideológica que justificasse a guerra, doutrina que emergiu de forma geral no final do segundo ano da guerra e pode ser definida como “cleptofascismo”. Essa doutrina combina ferramentas tradicionais para consolidar a elite por meio de uma plataforma de mercantilismo cleptocrático e a exigência de lealdade compulsória a uma ideologia militarista-nacionalista e antiocidental, declarada como a estrutura de valores do Estado-nação ou civilização-Estado russo.

Em seu discurso pré-eleitoral à Assembleia Federal, Putin descreveu bem claramente o juramento de lealdade à guerra em curso na Ucrânia e à ideologia do “cleptofascismo”, obrigatório para quem quisesse ocupar ou manter posições relevantes no novo regime. A corrente redistribuição de propriedade na Rússia visa reformatar a elite russa, que nas últimas décadas manteve uma identidade dual (um pé na Rússia, o outro no Ocidente). O núcleo dessa elite deve ser consolidado por sua cumplicidade (mesmo que apenas simbólica) em crimes de guerra, e os bens obtidos em decorrência dessa cumplicidade podem ser retirados de proprietários não leais o bastante ao “cleptofascismo”. Tais bases para a consolidação da elite, conforme o plano de seu arquiteto, deveriam preservar o rumo antiocidental do país durante décadas e permitir-lhe sobreviver ao próprio Putin.

Até agora, esse plano parece bastante convincente, mas exigirá esforços consideráveis, provavelmente provocando conflitos internos. Uma das raízes de tais conflitos será a contradição entre a vasta cooptação de novos proprietários pela elite e o sistema estabelecido de monopólios familiares [chaebols, palavra coreana usada por Rogov] no círculo íntimo de Putin, onde estão concentrados os principais ativos de renda. Contudo, fatores sociais sistêmicos parecem ser muito mais importantes. Apesar de todos os seus problemas, do ponto de vista social, a Rússia não é de forma alguma o Turcomenistão: o nível de capital social e humano, a cultura cívica e a estrutura social das metrópoles, o grau de infiltração da influência europeia e ocidental, tudo isso se choca com a ideologia da ditadura de Putin, que está se formando ad hoc e parece arcaica e exótica mesmo tendo como pano de fundo o nacionalismo pragmático dos maiores Estados do chamado Sul Global.

Autocracias fechadas e estáveis como a turcomena apoiam-se ou em uma estrutura social clânico-paternalista, ou em uma profunda religiosidade islâmica ou em ambos os fatores juntos. Sem tal fundamento, a ditadura putinista é obrigada a recorrer à coerção, à exaltação, à guerra e a uma ideologia ad hoc enraizada apenas em uma determinada parte da sociedade, provocando conflito social permanente.

Filas de protesto – Essas contradições se manifestarão de uma forma ou de outra no médio prazo. Não é tanto uma questão do conflito do regime com a oposição liberal quanto de seu conflito com o desejo das pessoas comuns pela normalidade burguesa. Porém, a escala temporal específica desse conflito dependerá amplamente da rapidez com que o novo regime revelar sua insolvência econômica.

A geração hoje com idade entre 20 e 40 anos será a principal fonte de resistência à transformação do regime no espírito do “cleptofascismo” de Putin. Com atitudes de vida moldadas pelos anos prósperos e com algum “protesto” da década de 2010, nas condições do novo regime encontra-se parcialmente privada de futuro, cujas expectativas formaram essas atitudes. Mesmo tendo como pano de fundo a crescente repressão do regime na década de 2010, ela se habituou a um nível muito mais elevado de tolerância ideológica e liberdade social. Junto dos velhos negócios russos com sua identidade dual, ela constitui outro vasto grupo de cidadãos que o “cleptofascismo” enxerga como hostil.

Isso determina, em particular, a rejeição à guerra generalizada entre essa geração, que serve como principal instrumento para perturbar as expectativas. Foi esse grupo que constituiu a maior parte dos contingentes das filas de protesto que acabaram se tornando uma parte significativa da “campanha presidencial” de 2024. As filas pela indicação de Nadezhdin foram substituídas pelas filas para o túmulo de Navalny. Esta última, depois, foi substituída pelas filas do “meio-dia contra Putin”.

A antropóloga social Alexandra Arkhipova tem toda a razão quando define esse protesto como uma “arma dos fracos”. Todavia, a resiliência que ele demonstra indica o potencial para uma verdadeira polarização social, e que a “geração Navalny” continuará sendo um fator social importante, moldando o ambiente dos que esperam pela hora da vingança política. Simbolicamente, as filas de protesto indicaram bem claramente que embora tenham ocorrido na Rússia as primeiras eleições “estilo turcomeno”, a guerra e as eleições ainda não transformaram o país em um Turcomenistão.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe suas impressões, mas não perca a gentileza nem o senso de utilidade! Tomo a liberdade de apagar comentários mentirosos, xenofóbicos, fora do tema ou cujo objetivo é me ofender pessoalmente.