terça-feira, 14 de maio de 2024

Raízes do lema Mulher, Vida, Liberdade


Link curto pra esta publicação: fishuk.cc/mahsaamini

Há alguns dias, achei por acaso esta resenha escrita em 2023 pelo italiano Gianni Sartori ao livro de uma acadêmica irano-francesa sobre a revolta das mulheres curdas contra a opressão étnica dos Estados nacionais, especialmente Turquia, Síria e Irã. Quando da publicação do texto, o movimento iraniano de revolta eclodido logo após a morte da jovem curda Jîna Emînî (em persa, Mahsā Amini), que tinha vindo do interior a Teerã, onde foi presa e acossada pela chamada “polícia dos costumes”, completava seis meses e parecia refluir.

Nesse contexto, os dois autores relembram que o lema que rodou o mundo como símbolo dos protestos, “Zan, Zendegi, Āzādi” (em persa, “Mulher, Vida, Liberdade”), na verdade se originou muitas décadas antes, no Curdistão e na língua local: “Jin, Jiyan, Azadî” (o jota se pronuncia como em português). Há dialetos do curdo que usam o alfabeto latino, e outros que usam uma adaptação da escrita árabe; a diferença do i sem circunflexo é que ele é mais curto e fechado do que o i com circunflexo. As formas jiyan e jîyan (com circunflexo) são igualmente corretas.

Eu mesmo traduzi o texto do italiano, mas há também outros artigos em inglês escritos após a morte de Emînî/Amini que traçam a “genealogia” curda, feminista e de esquerda do lema “Mulher, Vida, Liberdade” (o jin curdo é um parente distante do elemento “gin-” de origem grega, que aparece, por exemplo, em “ginecologia” e “misoginia”!). Por exemplo, o de Meghan Bodette (aqui na tradução em português), o de Somayeh Rostampour, a própria autora do livro resenhado (traduzido do persa), e curiosamente a professora Florencia Guarche, já em 2015, tinha defendido um TCC na Unipampa sobre o “Jin, Jiyan, Azadî” e depois fez o mestrado e continua seu doutorado sobre as revolucionárias curdas. Boa leitura!



Algumas considerações sobre a genealogia de “Mulher, Vida, Liberdade”. Uma “fórmula mágica” já empregada por Abdullah Öcalan (fundador do PKK em 1978) ainda em 2006. O lema “Jin, Jiyan, Azadî” não é um artigo de burguês radical-chic: é uma mensagem revolucionária bradada pelas combatentes curdas e escrita sobre as paredes das prisões.

Pretender, com as modestas forças à disposição e a falta de títulos acadêmicos adequados, resenhar, comentar, divulgar (e fatalmente reassumir) o que podemos definir como uma “investigação”, feita pela militante curda Somayeh Rostampour [Jin, Jiyan, Azadi (Woman, Life, Freedom): The Genealogy of a Slogan], sobre as origens e o significado do lema “Jin, Jiyan, Azadî” (“Mulher, Vida, Liberdade”) não pode ser, ao menos de minha parte, senão um exagero.

Por outro lado, os “especialistas de plantão” parecem no mais das vezes concentrados ou em instrumentalizá-lo ou, talvez pior, em utilizá-lo sem critério ou conhecimento adequado. Veja o caso de certa parlamentar europeia italiana ou de corporações paraestatais em todo caso respeitáveis, mas que dificilmente podem ser identificadas com os decênios de luta pela libertação do povo curdo.

É quase uma falta de respeito pelas que o idealizaram, representaram e, diria, quase encarnaram: as mulheres curdas que combatem a opressão patriarcal, estatal e capitalista em todas as suas incontáveis formas.

Vou, portanto, demonstrar aqui.

O movimento de revolta feminista (não parece exagero defini-lo como pré-insurrecional) que, por mais de seis meses, tem incendiado o Rojhilat e o Irã inteiro (e que no momento parece ter entrado numa fase de refluxo) tem uma data exata de início: 16 de setembro de 2022. Naquela data foi assassinada pela polícia moral da República Islâmica Jîna (registrada como Mahsā, porque o nome curdo tinha sido proibido) Amini.

Uma rebelião não somente contra o uso obrigatório do hijab, mas também contra o que Somayeh Rostampour qualifica como “44 anos de apartheid sexual, patriarcado, ditatura militar, neoliberalismo, nacionalismo e teocracia islamista”. E me desculpem se isso é pouco.

Um movimento preparatório para a queda do regime e uma mudança radical das relações sociais.

Apesar de tudo, como é o caso de todo movimento revolucionário, não faltam riscos concretos de instrumentalização (seja da parte de Estados como Israel e os EUA, seja da parte, por exemplo, dos monarquistas nostálgicos).

Atendo-se aos dados das ONGs, nos três primeiros meses do movimento, teriam sido presos mais de 18 mil manifestantes, milhares teriam sido feridos e cerca de 500 assassinados nos confrontos ou sob tortura (entre os quais cerca de 70 menores). Depois das condenações à morte já executadas, teme-se por outras já declaradas ou previstas (cerca de 100). Geralmente sem provas substanciais, com confissões extorquidas por meio de tortura. Pra não falarmos das condições desumanas na prisão e dos maus tratos sofridos pelas pessoas presas, em particular pelas mulheres.

Quando se grita, como destaca Somayeh Rostampour, que essa é “uma revolução das mulheres, pare de chamá-la de manifestação”, significa que desta vez (em relação aos movimentos de protesto do passado) as coisas são diferentes.

Quanto ao lema adotado, “Jin, Jiyan, Azadî”, passou a ser bradado por milhares de moradores de Saqqez (Rojhilat, Curdistão sob ocupação iraniana) durante o enterro de Jîna, o qual as autoridades tinham desejado que ocorresse em segredo.

Depois, passou a ser utilizado em outra cidade curda, Sanadaj, e em seguida pelos estudantes de Teerã. A partir de então, é ouvido claramente em todas as cidades e vilas do país inteiro.

Mas a estudiosa e militante curda se pergunta: “como esse lema chegou até Saqqez?”, e também: “qual é seu significado político e social, sua genealogia?”.

Jin, Jiyan, Azadî” não se tornou “a palavra de ordem da insurreição no Irã por acaso, ‘não caiu do céu’. Origina-se de uma longa história de lutas sociais. Representa a herança do movimento das mulheres curdas naquela parte do Curdistão localizada dentro das fronteiras da Turquia, o Bakur”.

Relembra, então, o que tinha escrito em setembro passado Atefeh Nabavii, companheira de cela de Shirin Alamholi, expoente do PJAK justiçada aos 28 anos em 2009 e cujo corpo jamais foi restituído à família:

“Soube pela primeira vez do lema Jin, Jiyan, Azadî por meio de Shirin Alamholi na prisão de Evin; estava escrito na parede da cela, ao lado de sua cama”.

Tanto o PJAK (Partido por uma Vida Livre no Curdistão) no Rojhilat quanto o movimento das mulheres em Bakur extraem sua visão de mundo do pensamento de Öcalan. Inicialmente (1978), o partido se valia de meios pacíficos, mas após o golpe de Estado de 1980 recorreu à luta armada. Também é notável que, desde 1999, aquele que podemos chamar de “Mandela curdo”, após um sequestro ilegal no Quênia, está detido na prisão de Imrali.

Inicialmente, naquela que podemos chamar de “fase marxista-nacionalista”, Öcalan também tinha sido influenciado pelo maoismo, bem como pelo pensamento de Frantz Fanon (Os condenados da terra) e de Che Guevara. Mas desde o início tinha fortemente encorajado o protagonismo das mulheres na luta de libertação, porquanto “a libertação do Curdistão não será possível sem a libertação das mulheres”.

Nisso ele se distingue da maior parte das organizações da esquerda revolucionária, não somente das organizações do Oriente Médio.

Ou seja, “o PKK jogava luz sobre a questão feminina tendo por pano de fundo o nacionalismo curdo moderno, que se baseava principalmente na defesa da pátria curda, do próprio território, da cultura e da língua curda”.

Na sequência, sobretudo a partir de 1995, ocorre no PKK o que Somayeh Rostampour considera uma “revolução cultural”, distanciando-se tanto da ortodoxia marxista mais rígida quanto da reivindicação de uma pátria independente (o “Grande Curdistão”) e evoluindo rumo a uma visão política centrada no conceito de “democracia” (em parte, em detrimento do conceito de “classe”). Em sua elaboração, Öcalan passa a individuar os sujeitos do processo revolucionário não somente nos trabalhadores, mas também, sobretudo, nas mulheres e nas práticas ecologistas.

Elabora uma síntese de comunalismo e autonomia social denominada “confederalismo democrático”, fundado em três pilares: as comunas, as mulheres e a ecologia.

A questão das mulheres se torna ainda mais central e a componente feminista do PKK adquire cada vez mais importância, tanto na elaboração política quanto na prática social. Bem como na Resistência, obviamente.

Contudo, já anteriormente, Öcalan tinha analisado e recuperado as antigas traduções matriarcais (matrilineares) mesopotâmicas (ver o antagonismo entre o deus masculino Enkidu e a deusa guerreira Ishtar) em contraponto tanto ao patriarcado quanto ao imperialismo e ao colonialismo.

Sua convicção era de que as mulheres, primeiras a criarem a vida e a cultivar os conhecimentos indispensáveis a ela, tinham sido expropriadas desses conhecimentos pelos homens.

Como Öcalan mesmo declarou, seu objetivo político era o de “restituir às mulheres a confiança em si mesmas, que elas tinham perdido demonstrando que o patriarcado não era um princípio eterno e natural da história, mas antes o resultado de práticas históricas”. Conclui, assim, que “o patriarcado podia ser superado”.

Pelo menos desde 1990, Öcalan tinha utilizado juntos, em diversas ocasiões, os conceitos de “Mulher” e de “Vida”.

Também porque a raiz das palavras mulher (Jin) e vida (Jiyan) na língua curda é a mesma.

Não por acaso, em 1999 o PKK publicava um documento intitulado “Jin, Jiyan” e, a partir de 2000, o lema “Jin, Jiyan” foi ampla e sistematicamente utilizado pelas mulheres curdas em Bakur (o Curdistão sob ocupação turca).

Desse ponto de vista, a expressão “Jin, Jiyan” é muito anterior à atual “Jin, Jiyan, Azadî”.

E também a palavra “Azadî” (Liberdade) se juntava aos conceitos basilares do PKK. Liberdade com relação às relações sociais de domínio e de poder, tanto do capitalismo quanto do Estado e do patriarcado.

Com base nos testemunhos recolhidos, em 2002, durante a cerimônia fúnebre organizada pelos militantes do PKK pra uma mulher vítima de feminicídio, as mulheres presentes tinham bradado o lema “Jin, Jiyan, Azadî” em sua inteireza. Desde então, continuou sendo difundido, se tornando quase uma tradição, sobretudo, pelas mulheres assassinadas.

Öcalan, de novo ele, tinha utilizado as três palavras juntas – talvez pela primeira vez – no quarto de seus livros escritos na prisão, A crise da civilização no Oriente Médio e a solução da civilização democrática, em 2006.

Não usado particularmente até 2008, explodiu, literalmente, em Rojava e Bakur, sobretudo a partir de 2013.

Numa carta escrita em 2013 (nos lembra Somayeh Rostampour), Öcalan evidenciava a potência inteiramente política do lema “Jin, Jyian, Azadî” na busca de uma “vida digna”, chegando a chamá-lo de “fórmula mágica” apta a fornecer um modelo pras mulheres de todo o Oriente Médio.

Naturalmente, “nem a história do PKK, nem a das mulheres no movimento, podem ser reduzidas àquela de seu dirigente”.

O PKK é “um movimento social e político que se desenvolveu não somente no âmbito político, mas também na vida cotidiana de milhões de pessoas já por várias gerações”.

E foram as mulheres do PKK, tanto as combatentes quanto as que atuam na sociedade civil, que transformaram o “Jin, Jiyan, Azadî” na ideia central do movimento. “Feminizaram” a política no Curdistão e também condicionaram a da Turquia, indo de casa em casa, falando com mulheres de todas as condições sociais e transformando a questão de gênero de uma exigência das elites num problema que concerne a todos os oprimidos.

Pra concluir com Somayeh Rostampour, “tudo o que ocorreu em 17 de setembro em Saqqez durante o funeral de Jîna Amînî não era um acontecimento sem precedentes”, mas antes “a continuação de uma tradição política revolucionária de longa data, gerada originalmente pelo PKK”. Tradição na qual têm tido um papel preponderante também as “mães pela justiça”, aquelas que perderam seus filhos na luta pela libertação no Bakur e no Rojhilat (cf. as “Mães do sábado” e o Dadkhaah).



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