Hoje eu gostaria de lhe apresentar um artigo, meio mal escrito e com parágrafos picotados demais, por sinal, que achei ao acaso procurando por comparações entre os governos autoritários e repressivos de Nayib Bukele em El Salvador e de Daniel Ortega na Nicarágua. O que une esses dois mandatários, apesar da propensão ultraliberal de um e da tendência comunizante de outro, é sua localização na América Central, fina faixa de terra que sempre teve instituições estatais muito instáveis, sobretudo durante o século 20, e que os EUA sempre viram como seu “quintal” natural de dominação econômica, política e estratégica. O quanto o primeiro fato decorre do segundo é algo a se debater, mas ambos são realidade, e infelizmente o agravamento da atual situação social centro-americana, bem como no Haiti, na Venezuela e em Cuba, impele milhares de refugiados todos os anos a tentarem uma vida “melhor” na América anglo-saxã, um sonho quase sempre ilusório.
Voltando ao foco, o nome em português do artigo que traduzi do espanhol (sem o Google desta vez!) é “Não nos confundamos: o caminho de Bukele não é igual ao de Ortega na Nicarágua...” e saiu em 8 de novembro de 2023 no site de um periódico de extrema-esquerda supostamente tradicional em El Salvador – busquei artigos que fossem os mais recentes possíveis, pra terem incorporado as evoluções negativas de Bukele. Quem assina é um certo “Colectivo de análisis Tetzáhuitl”, e embora pareça que eu esteja fazendo propaganda reversa, achei este texto muito indicativo da podridão em que se encontra hoje grande parte da esquerda no “mundo ocidental”. Como indiquei anteontem ao praticamente “glosar” o artigo da Djamila Ribeiro, a ascensão da extrema-direita (por definição, fascista) no Brasil se deveu em grande parte ao que eu chamaria de “tiktokização” do debate público, ou seja, não há debate, mas embate com vídeos rasos e lacradores, despertando a emoção e os instintos.
Meu grande receio é que esse método desenvolvido pelo MBL no Brasil (e não exclusivo nosso), mas amplamente implementado pelo bolsonarismo, acabe vencendo na esquerda, sobretudo em sua parte mais radical, e que o espaço pras figuras “moderadas” ou simplesmente intelectuais se reduza cada vez mais. O tal coletivo “Soberana”, de supostos gamers e programadores progressistas, é um exemplo desse chorume em evidência. Esse receio ficou ainda maior quando eu soube que o MBL estaria planejando ir a El Salvador pra fazer um documentário sobre a chamada “ditadura mais cool do mundo”, em algo que não difere muito do pessoal que é pago pra fazer conteúdo elogiando a Coreia do Norte, o qual nada tem de instrutivo nem mesmo de divertido. Sem divagar muito sobre o fascismo, o artigo se resume a dizer que a ditadura (eles não usam esse nome, claro) de Ortega é justificável porque ele combate o “imperialismo estadunidense”, enquanto Bukele é a ele submisso, e quem se opõe à FSLN, portanto, é “golpista”, “somozista” (o fantasma da volta ao passado!) e “oligárquico”. Simples assim.
Qualquer mané dos primeiros anos de graduação em Humanas numa universidade pública bananeira podia ter assinado essa garatuja sem despertar suspeitas, exceto pelo estilo de meu português, que julgo bastante peculiar. Ditadura de direita pró-EUA não pode, mas de “esquerda” anti-EUA pode. Mas o suco de cegueira seletiva, reducionismo teórico, monocausalidade (tudo é o imperialismo, tudo é os EUA), falta de empatia com vítimas de Ortega e até mesmo o antissemitismo conspiracionista que em nada deveria ao filme O judeu eterno da Alemanha de Hitler fariam jus a nossos pró-Palestina mamadores de jihadistas genocidas. Eles sequer têm coragem de dizer se o nicaraguense gerou algum benefício palpável no nível de vida da população, se limitando apenas a dizer que “o povo não faz oposição” – até porque não é nem bobo nem nada, diante de uma ditadura terrorista que persegue até mesmo a Igreja Católica, e isso numa região de maioria católica. A meu ver, mesmo que fossem colocadas taxas de crescimento anuais em comparação, não haveria qualquer justificativa: ditadura do capital é ruim, ditadura de uma casta burocrática que usurpa o poder em nome do proletariado também é, enfim, qualquer ditadura em nome de qualquer coisa, sobretudo em nome de um improvável futuro paradisíaco, deve ser evitada.
Seria didático no futuro fazer uma comparação entre esses regimes e uma provável evolução autoritária, já bastante visível, do governo de Javier Milei, que compartilha alguns delírios “ancaps” com Bukele (o qual, porém, não se comportava como um palhaço), embora a Argentina se diferencie da “Centroamérica” pelo relativo grau de solidez de suas instituições. Ditadores também podem chegar ao poder por meio de eleições democráticas, e sim, Ortega não é Bukele, o que não significa que ambos não sejam ruins a seus países à própria maneira. A própria desfaçatez das “reeleições indefinidas” da FSLN já seria uma aberração do ponto de vista moral e estritamente democrático. Mas pra interromper mais uma introdução que ficou demasiado longa, pontuo apenas que não fiz grandes mudanças no conteúdo, adicionei algumas notas explicativas (entre colchetes ou indicadas por asteriscos) e, como disse, adaptei ao estilo mais leve de português que costumo usar aqui na página. Boa leitura!
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Bukele é um instrumento do imperialismo estadunidense, não é inimigo dos Estados Unidos e muito menos do capital financeiro sionista [!], como é de fato Daniel Ortega.
A situação vivida pelo país é tão complexa que gera frequentes equívocos na análise e na interpretação do que está ocorrendo sob Bukele.
Alguns analistas consideram erroneamente que Bukele está seguindo o mesmo padrão de Daniel Ortega pra se perpetuar no poder.
Chegam ao cúmulo de garantir que Bukele quer transformar El Salvador em outra Venezuela, não sem antes a transformar em outra Nicarágua.
Não cremos que isso esteja ocorrendo no país diante da candidatura de Bukele pra concorrer a um segundo mandato presidencial, embora a Constituição proíba isso expressamente.
E muito menos com o autoritarismo que caracterizou sua gestão presidencial durante todos esses anos.
É claro que a reeleição presidencial na Nicarágua era impedida pela Constituição Nicaraguense e que uma interpretação do Supremo Tribunal de Justiça desse país, controlado por Ortega, facilitou seu caminho pra buscar um segundo mandato consecutivo em 2012, logo depois de ter vencido as eleições em 2007.
A diferença com nosso país é que na Nicarágua, o artigo que impedia a reeleição contínua e imediata não era uma cláusula pétrea e, portanto, podia ser reformada sem que se precisasse convocar uma Assembleia Constituinte, o que era o caso em El Salvador.
Ortega seguiu um caminho que não era obstado por nenhuma Lei da República.
Em sua interpretação do texto constitucional, o Tribunal Supremo de Justiça identificou um choque de direitos e fez prevalecer o direito que qualquer cidadão tem de buscar um cargo por sufrágio universal em detrimento da limitação constitucional que um Presidente em exercício tem pra se candidatar a um segundo mandato consecutivo.
Baseado nessa resolução do Órgão Judicial da Nicarágua, Ortega se candidatou uma terceira vez em 2012, ganhou a eleição e, já com o controle do órgão legislativo, reformou o artigo que impedia a reeleição imediata.
Esse novo cenário lhe permitiu continuar se candidatando à Presidência da República sem que nenhuma Lei, incluindo a Constituição, o impedisse.
A situação de Bukele é muito diferente.
Em primeiro lugar, o que o Tribunal Constitucional (*) imposto fez foi emitir uma resolução sobre um assunto que não era objeto de interpretação nem tinha a ver com a essência do que foi solicitado por uma demanda apresentada diante do Tribunal.
O requerente solicitava que fosse privada de seus direitos cívicos uma cidadã que estava promovendo a reeleição de Bukele, tal como estabelece a Constituição.
Diferentemente do que afirmam os bukelistas e alguns advogados próximos à CAPRES [Casa Presidencial, i.e. a presidência], o Tribunal não proferiu uma sentença sobre a reeleição, mas uma simples resolução por meio da qual interpretou de forma absurda as cláusulas pétreas da Constituição sem que esse fosse o objeto do requerimento.
Uma simples resolução judicial não era e continua não sendo de cumprimento obrigatório, tal como se garantiu.
Em segundo lugar, o Tribunal Constitucional passou por alto sobre a natureza pétrea de ao menos cinco artigos da Constituição referentes ao regime político do país que não podem ser modificados nem revogados sem que intervenha uma Assembleia Constituinte.
Isso significa que os impedimentos constitucionais à reeleição imediata continuam vigorando.
Em terceiro lugar, os artigos em questão são claros ao estabelecerem que um mandato presidencial não pode se prolongar por mais de cinco anos e que sua violação impele à insurreição.
Ao pleitear um segundo mandato, Bukele, por ter exercido a Presidência no período imediatamente anterior ao do início do período presidencial seguinte, está inabilitado a continuar se apresentando como Presidente da República e, portanto, deve ser destituído pela Assembleia Legislativa ou por uma insurreição popular.
Na Nicarágua, houve um choque de direitos em que terminou prevalecendo o direito cidadão de pleitear um cargo por sufrágio universal.
Por isso [Ortega] pode continuar buscando um novo mandato por tempo indefinido.
Em El Salvador, o cenário jurídico e político é muito diferente e é um erro o equiparar ao regime nicaraguense.
Diferentemente da Nicarágua, Bukele é a melhor opção dos Estados Unidos em El Salvador pra manter seus planos de expansão e dominação imperialistas na região.
Na Nicarágua, Daniel Ortega sempre foi um opositor do imperialismo estadunidense.
A luta conduzida pela Frente Sandinista [de Libertação Nacional, a FSLN, hoje partido no poder] e por Ortega, a qual derrubou a ditadura de Anastacio Somoza em 1979, sempre esteve carregada de um sentimento anti-imperialista que remonta à época de Augusto César Sandino, em inícios do século passado. (*)
Ortega nunca foi uma opção pros EUA, e desde que alcançou a Presidência pela primeira vez em 1980, eles sempre tentaram desestabilizá-lo.
Quando voltou a ganhar a Presidência, em 2007, o imperialismo estadunidense, aliado ao que restava da direita somozista, trabalhou pra sabotar seu governo.
A tentativa mais recente foi o financiamento dos “bloqueios” golpistas [na verdade, protestos populares cuja repressão brutal marcou a consolidação irreversível da ditadura] em 2018, quando os Estados Unidos, sem qualquer escrúpulo, financiaram um setor da direita empresarial contrária ao regime e a ultradireita ligada ao somozismo e a grupos políticos antissandinistas que há várias décadas residem nos EUA.
Os Estados Unidos promoveu a desestabilização e a tentativa de um golpe de Estado controladas por Ortega e pela Polícia Sandinista.
Essa não é a situação atualmente vivida por El Salvador com Bukele.
Enquanto na Nicarágua o Departamento de Estado, o Congresso dos Estados Unidos, a CIA e o capital sionista [!] de Wall Street apoiaram diferentes candidaturas presidenciais da oposição e impuseram uma série de sanções econômicas contra o governo de Ortega, em nosso país a tolerância dos Estados Unidos face aos abusos e excessos autoritários de Bukele não tem comparação.
O apoio público a sua candidatura e a sua reeleição por Brian Nichols, Subsecretário de Estado Adjunto para Assuntos do Hemisfério Ocidental, é a prova mais recente dessa tolerância.
Ortega nunca foi uma opção pros Estados Unidos e nunca será.
Por sua vez, Bukele já o era antes mesmo de ser candidato e Presidente da República.
O autoritarismo de Bukele tem uma origem e um propósito diferentes dos que se imputam a Ortega e seu governo.
Bukele não é igual a Ortega.
Bukele, como defendemos em outros artigos, é a melhor opção que têm os Estados Unidos pra consolidar seus projetos imperialistas na região, enquanto Ortega na América Central é algo como “a pedra no sapato” que impede que esse país e seus grupos de poder sigam mantendo o controle e a hegemonia em seu “quintal”.
O governo de Ortega não é nem pró-oligárquico e muito menos pró-imperialista como o de Bukele.
Não há nada na gestão presidencial de Ortega que nos faça pensar que tenha uma aliança com o imperialismo e com a oligarquia nativa [criolla] pra se manter no poder.
Uma gestão autoritária e violadora do Estado de Direito e das liberdades fundamentais é funcional ao estabelecimento e consolidação de um modelo de gestão econômica neoliberal e pró-oligárquica.
E esse não é o caso de Ortega.
Por sua vez, ao contrário do que prometeu na campanha de 2019, Bukele manteve os privilégios da oligarquia salvadorenha, e sua gestão econômica favorece os interesses corporativos do capital financeiro sionista [!] dos Estados Unidos.
A aliança com os grupos oligárquicos nacionais e os grupos hegemônicos que manejam os fios do poder nos Estados Unidos é indispensável pra manter esse modelo de acumulação e dominação política que Bukele gerencia desde 2019.
Bukele é obrigado a exercer um regime autoritário e excludente que lhe permita enfrentar a rebeldia e a resistência cidadãs e consolidar o modelo oligárquico e pró-imperialista de acumulação de capital.
Bukele não pode se dar ao luxo de abandonar o poder do Executivo e o controle do Estado.
Se o fizer, o mais provável é que acabe tendo o mesmo destino do ex-Presidente de Honduras, Juan Orlando Hernández.
Na medida em que deixar de ser útil pros Estados Unidos, terminaria detido num presídio federal desse país, como ocorreu com outros mandatários que, no passado, foram aliados do imperialismo.
Bukele segue no poder porque é algo funcional aos Estados Unidos.
No dia em que deixar de ser útil, vai ser descartado e se converter num estorvo pros interesses imperialistas e oligárquicos, tal como ocorreu com o ditador Hernández Martínez, em meados do século passado.
Isso não ocorre com a Presidência de Daniel Ortega.
Ele se mantém no poder apesar da oposição do imperialismo e da oligarquia herdeira do somozismo.
Os setores e as maiorias populares não integram a oposição a Ortega e a seu governo [por que será, né?...].
A oposição que foi obrigado a enfrentar nos últimos anos são golpistas e desestabilizadores financiados e apoiados politicamente pelo imperialismo estadunidense.
Não há grande diferença entre essa oposição, majoritariamente no exílio, e os contras nicaraguenses da década de 1980, apoiados econômica e militarmente pelo governo de [Ronald] Reagan.
Equiparar o regime político de Bukele com o de Ortega e até mesmo com o de [Nicolás] Maduro na Venezuela é um tremendo erro de análise política que no ajuda a fortalecer a rebeldia e a resistência cidadãs e, menos ainda, a identificar a natureza oligárquica do governo direitista de Bukele.