sábado, 11 de novembro de 2023

Macron critica a “linguagem inclusiva”


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“Non, Greta, non existe essa coisa de menine!”


No dia 30 de outubro de 2023, o presidente francês Emmanuel Macron inaugurou a chamada Cidade Internacional da Língua Francesa (ou CILF) no castelo de Villers-Cotterêts, situado na cidade de mesmo nome e onde o rei Francisco 1.º assinou em 1539 uma ordenação (ou édito) que transformava o francês, então também conhecido como o “dialeto parisiense” das elites e dos intelectuais, em língua oficial do direito e da administração no lugar do latim medieval. Por essa razão, o documento também é considerado a “certidão de nascimento” do francês como língua de unificação nacional, depois expandida ao redor do mundo. Visando deixar uma grande marca em sua turbulenta administração, Macron aventava já em 2018 a ideia de reformar o castelo pra torná-lo um espaço internacional de reunião e incentivo a escritores e pensadores francófonos de todo o planeta, bem como um espaço de arte e memória, à maneira do Museu da Língua Portuguesa (São Paulo), mas de dimensões bem maiores.

Do nada, enquanto faz seu sonífero discurso de inauguração de quase uma hora, Macron arranca aplausos sinceros (único momento em que isso acontece antes do fim) de uma plateia geriátrica ao atacar dois tipos de “linguagem inclusiva” mais ou menos correntes em nossas línguas europeias modernas. O primeiro, obviamente, é resumido na frase “o masculino faz o neutro”, ou seja, se quiséssemos incluir pessoas de várias identidades de gênero, bastava usarmos o masculino, já que ele seria o “gênero universal por excelência”. Não tenho certeza se foi uma referência às pessoas que se identificam (em bom mussunzês...) como “não bináries” ou à prática, bem mais antiga, de colocar juntas as terminações de gênero masculino e feminino numa só palavra. Explico: em português, por uma questão de etiqueta, é comum separarmos terminações masculinas e femininas com parênteses ou barras, em frases como, por exemplo, “Estimados(as) professores(as) brasileiros(as)” ou “Estimados/as professores/as brasileiros/as”, ou mesmo invertendo a ordem – “Estimadas(os)...” ou “Estimadas/os...”.

Embora por vezes tanto a escrita quanto a leitura (sobretudo em voz alta) fiquem cansativas, ainda mais quando é o radical todo que muda com o gênero, e não apenas a terminação (palavras como “meu/minha”, “seu/sua” etc.), isso jamais incomodou alguém e sempre foi visto como uma evolução do “espírito do tempo”, e não como “modismo”, segundo disse Macron. Porém, alguns problemas se põem. Primeiro, têm se popularizado rapidamente os conversores de texto em voz nos aparelhos eletrônicos pra pessoas de baixa ou nenhuma visão, e esses programas ainda não forma treinados pra verbalizar tais sutilezas (muito menos comuns, aliás, em línguas com marcação de gênero irrisória, como o inglês e o mandarim). A vocalização, pois, fica truncada, o que é especialmente prejudicial em mensagens acadêmicas e institucionais. Segundo, o grafismo do francês é diferente, pois enquanto o português substitui vogais, o francês adiciona letras, sejam vogais ou consoantes, pra formar o feminino, mesmo que nem sempre a pronúncia mude. Isso faz com que ao invés de parênteses, eles prefiram usar pontos (os quais vi mais vezes) pra circundar as formas protuberantes: nossa frase acima ficaria “Estimé.e.s professeur.e.s brésilien.ne.s” (é mais corrente a forma escrita professeur/s pra ambos os gêneros). Realmente, penosa de ler, mais ainda de digitalizar...

E terceiro, ligado tanto à acessibilidade quanto a aspectos culturais: a visibilização das pessoas que em questão de gênero (mas não de sexualidade, atenção!) dizem não se identificar nem como homens, nem como mulheres (como pode ocorrer com homoafetivos ou transgêneros) e se autodenominam “não binárias não bináries”. Confundindo a questão de “gênero” em linguística com a questão de “gênero” em biologia, elas (as pessoas!) não gostam do uso de morfemas masculinos ou femininos, e estão quebrando a cabeça pra se concederem uma representação linguística, algo obtido malemá com vogais não reservadas a gêneros. Em português, já vemos formas nas quais traduziríamos nossa frase-exemplo como “Estimades professôries [sic!] brasileires”, e que realmente ainda não sei se pretendem representar apenas as pessoas “não bináries” ou toda e qualquer identificação de gênero, sem distinção. Outro debate é sobre a compulsoriedade: devem as instâncias oficiais se virarem pra incluir alguma expressão “neutra” ou, pelo contrário, proibirem seu uso inclusive no ensino escolar público? Me divirto muito com bolsominions que nas redes sociais, não juntando lé com cré, pra atacarem os políticos ou conglomerados de mídia que eles odeiam, usam ironicamente “Globe”, “Lule” etc.

As formas com “e”, “u” (“êlu” por “ele” ou “ela”) e o escambau, ao menos, são mais decifráveis pela informática, e talvez por isso começaram a prevalecer, do que as primeiras formas não referentes a nenhum gênero, expressas com sinais não alfabéticos ou consoantes ilegíveis, como “Estimad@s professor_s brasileirxs”. Por razões de sobrevivência, os usuários de leitores automáticos começaram a implorar pela rejeição desses hieroglifos, mas o debate continua, e já vimos que vai além da mera e antiga inclusão das mulheres na linguagem comum. Os principais tópicos: o “não binarismo” exigiria uma expressão linguística? Uma “linguagem inclusiva” passaria pela invenção de formas diferentes? Qual seria a utilidade prática, pro grosso da população que sequer domina a norma culta tradicional, e não pra uma pequena parte? Essas formas deveriam ser impostas ou proibidas? E se fosse deixado ao costume dar a última palavra, será que pegariam ou, como muitos “modismos”, morreriam esquecidas? Na França, a própria Brigitte Macron, professora aposentada de francês, já causou espécie ao condenar publicamente as formas iel, iels, que valeriam respectivamente por il, elle (ele, ela) e ils, elles (eles, elas).

Apenas como disclaimer, quero ressaltar que estou escrevendo aqui apenas fatos, e não minha opinião, sobre a qual eu poderia escrever um longo texto, e mesmo assim sem tirar conclusões definitivas, pois nem os gramáticos normativos, nem as pessoas religiosas, são os formatadores das verdades da vida. Questão diferente, ainda, é a linguagem neutra tecnicamente falando, ou seja, a construção ou tradução de textos que, na medida do possível, usem mínima ou nenhuma forma que faça alusão a gênero e que, segundo gente do ramo, já é uma demanda crescente. Dando meu único exemplo grosseiro, é como se ao invés de dizermos “Bom dia a todos e todas”, “Bom dia a todas e todos” ou “Bom dia a todas, todos e todes” (Alexandre Padilha!), saudássemos “Bom dia pra todas as pessoas” (que já vi professoras usando, até meio constrangidas), “Bom dia pra todo mundo”, “Bom dia, pessoal” ou simplesmente... “Bom dia”.

A versão escrita no site do Palácio do Élysée, que confrontei com meu texto de ouvido, tem algumas diferenças com a fala e até alguns erros, pois quando Macron diz lisible (legível), lemos visible (visível). Como o canal do YouTube da presidência ainda não permitia o download de outras fontes, também acabei tirando o trecho concernente do canal estatal France 24. Seguem o vídeo com uma pequena montagem “humorística”, a transcrição e minha imperfeita tradução:


Il faut permettre à cette langue de vivre, de s’inspirer des autres, de voler des mots, y compris à l’autre bout du monde, et j’y reviendrai tout à l’heure, de continuer à inventer... mais d’en garder aussi les fondements, les socles de sa grammaire, la force de sa syntaxe, et de ne pas céder aux airs du temps. Dans cette langue, le masculin fait le neutre. On n’a pas besoin d’y rajouter des points au milieu des mots, ou des tirets, ou des choses pour la rendre lisible.

É preciso permitir que essa língua viva, inspire-se nas outras, roube palavras, inclusive do outro lado do mundo, e voltarei a isso daqui a pouco, continue inventando... mas também preserve seus fundamentos, as bases de sua gramática, a força de sua sintaxe, e não ceda aos modismos de cada época. Nesta língua, o masculino faz o neutro. Não é necessário, no meio das palavras, acrescentar pontos, hifens ou coisas para torná-la legível.