Esta linda canção me foi sugerida e traduzida pelo amigo Tiago Rocha Gonçalves, de Curitiba (PR), descendente de ucranianos, como eu. Ela se chama “Біда мене та заставила” (Bida mene ta zastavyla), A miséria me obrigou, é de domínio popular (ou seja, não tem autoria conhecida) e eu apenas corrigi o que o Tiago já tinha feito e legendei. Baixei o vídeo sem legendas desta página, apenas tirando as vinhetas do começo e do fim: foi produzido pela agência RostProduction e postado em 2013, filmando o Coletivo “Ozornye Naigryshi”, da cidade ucraniana de Donetsk e que comemorava seus 30 anos de atuação. Eu mesmo decidi legendar a filmagem, mas o Tiago tinha sugerido esta versão em áudio.
A canção fala de uma garota ou moça que estava acostumada aos prazeres e diversões da vida, mas teve de se casar com um senhor de idade pra amenizar a miséria da família, algo muito comum nas sociedades pobres e tradicionais. Como a letra não tem uma história específica, vou explicar umas coisas sobre a tradução, porque ela apresentou várias peculiaridades. Primeiro, vejam que o nome do coletivo está em russo, e não em ucraniano: de fato, Donetsk fica na parte leste da Ucrânia, que tem maioria de falantes do russo, embora o grupo cante muito em ucraniano. Porém, eles têm ao menos um traço perceptível do sotaque local: a pronúncia ocasional da letra “г” como “gué”, e não “hé”, como no ucraniano padrão. Outra característica é o uso da conjunção ou partícula “та” (ta), que originalmente significa “e”, como uma forma de dar ênfase à frase ou simplesmente obedecer à métrica, e por isso nem sempre é traduzida.
Vejam também que não há a preocupação de ser literal na tradução, mas antes explicativo. A palavra “дьор” (dior), por exemplo, não tem tradução específica, sendo mais usada na expressão daty dior (correr, fugir, entrar em fuga), por isso escolhemos dizer “fugia pros passeios”. O mesmo pra “бадьор” (badior), que significa “astúcia”, “artimanha”, “agilidade”, “facilidade”, mas que dado o contexto ficou melhor como “diversão”, ou seja, “levar uma vida fácil, com facilidades”, a qual acabou após o casamento precoce. Temos o uso idiomático de “музики” (muzyky), como muzyka no plural mesmo, indicando “festa”, “baile”, “dança acompanhada pela música”. Outras expressões simplesmente só eram encontradas no dicionário com explicações, e foi preciso dar meio que “equivalentes explicativos”. Por exemplo, “постоли” (postoly) é o par de calçados femininos compostos de um só pedaço de couro, amarrados com tiras e muito comuns na cultura eslava: virou “sapatinho de couro” (“mocassim” até valeria, mas é pouco conhecido, e o diminutivo já dá o toque feminino).
Também “свита” (svyta) não tem equivalente e foi preciso improvisar: é uma grande roupa de tecido único, usada tanto por homens quanto por mulheres, e que os homens no vídeo exatamente estão usando em cor vermelho escuro. A aproximação mais realista foi “casacão”, porque “sobretudo”, em geral masculino, não convencia, dadas suas outras conotações. “Перевесло” (pereveslo), na verdade uma tira de palha que serve pra amarrar feixes de trigo ou outros cereais, virou uma “cinta de palha”, com a qual a moça realiza a ação de “підв’язатися”, ou “amarrar ou ligar por baixo”. Entendido o contexto, que a rica língua ucraniana torna ainda mais preciso, deixamos somente “atei”. E podemos falar do verso final, em que a moça “agradava aos rapazes (ou moços)”, mas como obviamente o assunto eram paqueras, ampliamos pra “deixava apaixonados”.
A letra original como comumente é registrada tem outras estrofes que não são cantadas, mas a versão é praticamente a mesma que aparece no vídeo. Seguem abaixo as legendas, o texto parcial em ucraniano (entre colchetes, o que foi cantado, mas não consta da fonte original nem muda o sentido geral) e a tradução em português:
Біда мене та заставила
Приспів (2x):
На музики я вбиралася [збиралася],
У постоли узувалася,
Перевеслом підв’язалася,
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Refrão (2x):
Eu me arrumava pros bailes,
Punha sapatinhos de couro
Eu o atava com cinta de palha
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