sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Atitude do historiador para com fontes


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Pequena postagem (“textão”, rs) que publiquei na aba Comunidade da minha TV Eslavo (YouTube), seguida de comentários e das minhas respostas, com algumas adaptações na redação.

Pra fazer historiografia precisamos apenas de duas coisas: 1) Fontes primárias; 2) Leitura crítica das fontes. Quando a faculdade de História é boa, ela nos treina assiduamente nesses dois pontos, mas uma cultura geral e uma erudição amplas são pré-requisitos essenciais do bom historiador.

Muitos escritores, jornalistas, filósofos, amadores etc. fazem obras “históricas” que justamente não seguem aqueles dois preceitos. Quase sempre acontece de consultarem fontes de “segunda mão” (como chamamos a historiografia em si, em contraponto às “fontes primárias”, mas sem juízo de valor), fazendo copia-e-cola de várias delas, sem mesmo pensarem em como se chegou a tais conclusões. (Por exemplo, adotam o pressuposto ideológico do historiador, do qual nenhum pode se livrar, mas ignoram o raciocínio lógico que levou ao texto final.)

Outra hipótese, cada vez mais viável, é terem acesso a fontes primárias/documentos, mas simplesmente copiarem o que está escrito, sem levar em conta contexto, autor, omissões, entrelinhas, pertencimentos etc. Ou seja, é o célebre empirismo presente tanto em positivistas quanto em marxistas ortodoxos, no qual o historiador se dissolve na figura do simples “passador” de informações.

Agora, o pior escritor de todos é aquele que faz uma “obra histórica” se amparando em retalhos do segundo tipo de pesquisador, que nem sempre é historiador formado. Nessa categoria, em geral, se encaixa ainda o debatedor de internet a quem não basta ter opiniões ruins, mas também as defender com livros ruins.

Alguns esclarecimentos:

1) Reitero a diferença não valorativa, ao se redigir um texto histórico, entre “fontes primárias” (documentos) e “fontes secundárias” (obras de historiadores). O recurso exclusivo às segundas em geral só é totalmente aceito em ensaios e trabalhos de graduação, pois em teses e trabalhos mais sérios só vão servir de orientação pra ler outras fontes primárias e, a partir delas, aí sim criar um novo trabalho “secundário” original.

2) História “ideológica” (que não se confunde com partidarismo político) não é ruim, desde que haja uma decorrência lógica entre pressupostos, uso das fontes e conclusões. Ninguém se livra da ideologia, mas pode a controlar, porque não somos folhas em branco, e sim produtos de um meio e de escolhas que fazemos. Mesmo que não sigamos uma escola específica, ainda somos ideológicos, porque temos uma noção prévia sobre por que pesquisamos algo, por que privilegiamos certos aspectos (já que é impossível uma história totalizante) e até por que optamos pelas Humanas. Assim, história “neutra” ou conhecimento “sem ideologia” é algo que só existe na cabeça de quem não entende nosso ofício.

3) A historiografia atual ampliou enormemente a noção de “documento” ou “fonte primária”: ela não abrange mais apenas o papel empoeirado no arquivo, mas também música, dança, artes plásticas, entrevistas orais, folclore, mitologia, comida, vestuário, literatura popular (como os cordéis), filmes, novelas, propaganda e até mesmo gibis e revistas. Em suma, tudo o que sirva de “resquício do passado” é passível, dependendo da metodologia, de se tornar documento.


Internauta 1: Eslavo, no caso dos marxistas ortodoxos isso não se aplica. Qualquer marxista que se preze, ao ter acesso a uma fonte primária, irá fazer algumas perguntas: Quem a escreveu? Em que contexto? A qual classe social essa pessoa pertence? Quais seus interesses possíveis? Qual ideologia está embutida nessa classe? Até pegando, por exemplo, obras históricas do próprio Marx, como O 18 Brumário de Luís Bonaparte, fica claro que o marxismo tá muito longe de um positivismo metodológico, em especial pelo método do materialismo histórico, que difere bastante do positivismo. Por isso discordo dessa parte.

Resposta: Quando usei o termo “marxismo ortodoxo”, eu na verdade quis dizer “stalinismo”, nome mais correto pro que chamam de “marxismo-leninismo” (e às vezes misturam com “maoismo”). O que você chama de “marxismo” eu chamaria de “método de Marx”, já que as leituras de suas obras não foram unívocas. Quem inventou um negócio chamado “marxismo” foi exatamente a 2.ª Internacional, quando começou a erigir as obras de Marx numa visão de mundo integral e acabada, coisa que contou com o dedo do próprio Engels. E o “marxismo” social-democrata, sobretudo na Alemanha, era um troço absolutamente empirista, incluindo uma inevitável trilha linear pro fim mítico chamado socialismo. Em grande parte a Comintern herdou essa visão tosca, ainda por cima ligada à necessidade prática de legitimar ideologicamente a URSS, embora Lenin tentasse ir mais além. No século 20, houve muitas outras interpretações não comunistas de Marx e Engels, umas melhores que outras, é claro.


Internauta 2: Como um admirador do positivismo, prefiro um texto histórico imparcial acrítico a um crítico tendencioso. Mas é claro que o ideal é um crítico imparcial.

Resposta: Não há “crítica imparcial”, porque nunca alguém vai se abstrair de suas posições. E um mesmo intelectual pode até mudar de posição e pressupostos ao longo da vida. Existe uma diferença entre “selecionar” e “omitir”, que demarca o limite entre a crítica e a deturpação. Em história selecionamos (tema, cronologia, espaço, esferas da vida) porque é simplesmente impossível abarcar tudo: o conhecimento em constante crescimento, na verdade, implica monografias “parciais” que juntas formem um quadro mais ou menos fidedigno de uma época. Podemos omitir por incapacidade de abarcamento, mas não podemos esconder deliberadamente um elemento apenas pensando em legitimar uma conclusão decidida de antemão.

Seu texto “imparcial acrítico”, ao que parece, é uma mera narrativa de fatos, nomes e datas, mas isso é auxiliar, e não essencial na historiografia, cujo papel é justamente dar um sentido e articulação a esses fatos, nomes e datas. O que determina a importância histórica de um evento ou de uma personalidade política? Eles não têm essa característica de antemão, mas apenas dentro de uma rede na qual eles fazem sentido. E eu repito: toda crítica é tendenciosa, mas existem críticas boas e más, críticas fundadas e infundadas. A ideologia pode ser controlada, mas não extirpada, devendo-se saber quando nossos pressupostos acabam viciando os dados brutos. A história só evoluiu muito no último século porque aprendemos a fazer crítica de qualidade, embora nem sempre seja fácil (e é por não saber fazê-la que muita gente se diz “historiador”, achando que acumular dados já é história).

Adendo: Percebi que passei por alto quando ele disse que o ideal seria um historiador crítico imparcial. Pois bem, como vocês perceberam, isso é um paradoxo, pois pra mim toda crítica é parcial, toda crítica é “tendenciosa”, e o que valida a crítica são justamente critérios lógicos e epistemológicos, e não os pressupostos políticos do historiador.


Internauta 3: Só uma pergunta, Eslavo: como és poliglota, imagino que fales alemão. Percebo que utilizas dialética (ontologia relacional) quando falas do marxismo social-democrata, me parece que fazes um julgamento severo. Pergunto: já leste Franz Mehring, a carta de Engels a este de 14 de julho de 1893? Pois nesta Engels abona a interpretação de Mehring feita em seu O materialismo histórico. Gostaria até de te pedir um vídeo sobre Mehring, caso o conheças.

Resposta: Tenho poucas leituras propriamente teóricas, mas a própria social-democracia alemã da época não era um corpo unificado. Havia interpretações predominantes que faziam uma leitura determinista e empirista de Marx, enquanto outros obviamente destoavam da massa. Quanto ao próprio Engels, lembremos que alguns analistas dizem que essas tendências “positivistas” eram mais fortes nele do que em Marx, o que compromete a atualidade de obras como O Anti-Dühring e Dialética da natureza, por exemplo. E não, não sou fluente em alemão, e estou lutando pra suprir essa lacuna bem antes do meu exame de qualificação, hahaha.