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Uma das questões mais candentes do atual pensamento social é a da necessidade de que todo Estado deve ser laico para garantir liberdade de crença e igualdade de condições na profissão de seus cultos, para que não haja conflitos religiosos – por vezes violentos – e que nenhuma religião se sobreponha às demais por meio da máquina estatal. Porém, antes de mergulhar de cabeça nessa luta, é preciso fazer uma análise realista que avalie a real possibilidade de haver uma total separação entre Igrejas e Estado e, assim, traçar as diretrizes de ações políticas eficazes e sóbrias.
Numa perspectiva histórica, nota-se que a separação entre religiões e poder político institucional é algo muito recente, portanto pensá-la como dada há muitos séculos é um anacronismo. Nas primeiras civilizações e na Antiguidade Clássica – e mesmo, lembre-se, entre povos ditos primitivos –, não havia uma distinção muito nítida entre as funções de governança e de regência sobrenatural, e, quando os líderes espirituais não faziam parte da instância governamental, o próprio chefe da comunidade exercia o mando sobre a forma, o conteúdo e o andamento dos rituais – e é algo que se vê até hoje, de certa forma, na Inglaterra e na maioria dos países nórdicos.
Com o advento dos primeiros reinos cristãos da Idade Média e o crescente poder papal, a religião passou a adquirir um formato mais independente, mas ainda mantinha sob seu domínio as esferas da orientação moral daqueles soberanos e da educação. Apenas entre o Renascimento e a Revolução Francesa é que vários campos do conhecimento passaram a destacar-se da fé – embora sem sair totalmente de sua influência –, grosso modo na seguinte ordem: arte, política, ciência, filosofia e ensino.
A “descristianização” do Ocidente é um fenômeno tardio, do século 20 – apesar de ter sido gestado no anterior –, e seria muito pedir que todas aquelas áreas também hoje não sofressem séria influência do cristianismo e que este não continuasse sendo uma força cultural considerável. Um último aparte: deve-se restringir essa análise ao mundo de cultura ocidental, pois em muitos outros lugares não houve ainda essa cisão entre religião e outras práticas sociais.
A análise da sociedade ocidental contemporânea mostra que as religiões cristãs prosseguem como uma voz muito poderosa e considerada na tomada de decisões que afetem o grosso da população, que, na Europa, ainda é, em grande parte e em diversos matizes, seguidora de Jesus. As Igrejas são um forte “aparelho privado de hegemonia”, ou seja, como componentes da “sociedade civil” – o que significa que intermedeiam as relações entre as pessoas comuns e a “sociedade política”, o Estado propriamente dito –, têm o poder de influenciar a opinião comum e, por esse meio indireto ou por meios diretos, direcionar ou condicionar as decisões públicas conforme sua vontade ou seus interesses. Se isso ocorre para o bem ou para o mal, não é algo em questão aqui; este texto visa fazer um rascunho de análise materialista, quer dizer, científica, do tema, e não uma valoração filosófica.
Em poucas palavras, o fato é que as religiões, acima de tudo as cristãs, possuem um peso que não pode ser desconsiderado na hora de traçar planos políticos alternativos ou institucionais, e sua penetração nos poderes Executivo e Legislativo é considerável, seja nas comissões parlamentares constituídas para a orientação a determinadas legislações, seja nas bancadas religiosas formadas nas câmaras e nas assembleias, seja nas demonstrações de fé que os governantes encenam para atrair a simpatia de seus eleitores ou governados, seja na reverência que presidentes, governadores e prefeitos prestam aos clérigos em reuniões oficiais ou outras ocasiões, nas quais ambos prometem conciliar suas metas e, assim, comprometer-se à manutenção material e moral de seu interlocutor.
O Estado e as Igrejas, sobretudo as majoritárias em determinado país ou região, funcionam umbilicalmente e, repartindo o controle dos corpos e das mentes do povo, atuam sob um mesmo modelo de negociação, barganha, “guerra de posições” e apelo ao emocional ou ao irracional. Essa aliança, forjada em milênios de colaboração entre os poderes ou âmbitos temporal e espiritual, não pode ser rompida por nenhuma revolução ou decreto; ainda que tal dedução nem sempre tivesse sido feita, a política nasceu no bojo da religião, e vice-versa. A principal consequência disso é que, se uma desaparecer, a outra desaparecerá junto.
Cabe dizer, portanto, que apenas uma superação dos atuais modelos de política e de religião fará com que o problema do Estado laico seja igualmente superado; na verdade, como é de se esperar, esse problema também se extinguirá. Uma vez que não haverá uma instituição política onipotente para bajular o sacerdócio, e que não haverá ajuntamentos religiosos para ordenar seus fiéis a “dar a César o que é de César”, a autogestão popular, instruída por um ensino escolar livre de compromissos e de formatações, dará conta de suprir as necessidades práticas e transcendentais de todas e todos: o controle dos meios de vida, diálogo e reprodução científica e econômica por seus próprios usuários e a ciência das formas particulares de cada um de alcançar o mais completo prazer erótico-estético, dois campos que se complementam na formação de nossa condição humana, serão, respectivamente, as características objetivas e subjetivas que manterão as pessoas em paz consigo mesmas e, portanto, com seus semelhantes.
Enquanto esse sonho distante não se concretiza, pode-se considerar que o Estado laico, realizado ao menos na teoria, é uma solução temporária de compromisso, apesar de tênue, para evitar – o que, como se nota, nem sempre ocorre – a apropriação das esferas públicas por interesses privados e a marginalização de grupos ideológicos minoritários por outro mais potente.
É plausível afirmar, num campo ideal, que a expressão “Estado laico” é uma contradição, pois se tanto as Igrejas quanto a política institucional nascem dentro de um mesmo caldo cultural, é óbvio que um lado procurará influir no outro, deverão acordar entre si para viver juntos e, como que “por osmose”, intercambiarão suas características, objetivos e visões de mundo. Mesmo não professando nenhum credo específico, cada governo se guiará por determinados valores “sagrados”, às vezes caros também à nacionalidade, e não apenas para o grupo que a dirige, nem sempre coincidentes com as vontades e carências das massas, o que torna o Estado uma entidade claramente confessional.
O mais importante, em qualquer ocasião, é que a “sociedade civil”, sem qualquer restrição ditatorial imposta pela “sociedade política”, possa servir como campo de acordos e conversações entre os diversos grupos sociais a fim de se atingir tolerância mútua, e, acima de tudo, que as aspirações coletivas não sejam sufocadas nem tenham seu substrato material furtado por picuinhas esotéricas.
Bragança Paulista, 6 de fevereiro de 2011.
Levemente alterado a 21 de maio de 2012.