sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Discurso de Videla abre ditadura (1976)


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Este discurso foi proferido na Casa Rosada pelo general Jorge Rafael Videla, que assumiu a presidência de facto da República Argentina após o golpe militar de 26 de março de 1976. A ditadura militar que se seguiu era chamada “Processo de Reorganização Nacional” e visava sanar o suposto caos econômico, administrativo e social que teria se instalado no governo de Isabelita Perón, viúva do popularíssimo militar e ex-presidente Juan Domingo Perón. Videla também tinha sido chefe do Exército Argentino (1975-78) e governador de facto da província de Tucumán (1970) durante outra ditadura, então chamada “Revolução Argentina”. No dia 30 de março, este pronunciamento de Videla em cadeia nacional marcou o início da que seria a mais sangrenta ditadura da Argentina, num século de incontáveis golpes militares.

Videla (1925-2013) foi presidente da Nação até 29 de março de 1981, quando o sucedeu Roberto Eduardo Viola, que sairia já em dezembro. O governo em crise ainda teria como líderes os militares Carlos Alberto Lacoste, Leopoldo Fortunato Galtieri (que declarou a malfadada Guerra das Malvinas), Alfredo Oscar Saint-Jean e Reynaldo Benito Antonio Bignone, até a posse do democraticamente eleito Raúl Alfonsín. Videla terminou condenado à prisão perpétua por crimes de lesa-humanidade e foi anistiado pelo presidente Carlos Menem, mas sob o governo Cristina Kirchner, retornou à prisão, onde enfim morreu. No século 20, a Argentina teve nada menos que seis golpes militares com ditaduras: a de José Félix Uriburu (1930-32), a da chamada “Revolução de 43” (1943-46), a da chamada “Revolução Libertadora” (1955-58), a de 1962, a da “Revolução Argentina” iniciada por Juan Carlos Onganía (1966-73) e a referida “Reorganização” (1976-83).

O vídeo completo, com baixa qualidade de som e imagem, é bastante longo, e a segunda parte possui a investidura de Videla e parceiros pela Justiça, então deixei só a primeira, com o discurso completo. Eu mesmo traduzi a partir do espanhol, legendei, cortei o quadro e dei maior volume ao som, que era bastante baixo. Neste arquivo em PDF (Mensajes presidenciales: Proceso de Reorganización Nacional, 24 de marzo de 1976, tomo 1, Buenos Aires, Imprenta del Congreso de la Nación, 1976) um pouco pesado, podem-se ler os discursos impressos de Videla no ano de 1976, e o primeiro é justamente este (pp. 7-15). Apenas umas palavras, sobretudo no final (parece que o ditador improvisou as últimas linhas, após tirar os óculos), diferem entre áudio e texto, mas nada que prejudique a compreensão.

Na maioria dos pontos, não me importei em ser estritamente literal, sobretudo na passagem pras legendas, que exigem várias adaptações ao espaço. Na verdade, ouvindo o vídeo e olhando a versão impressa, fiz a legendagem, inclusive traduzindo o que eu só ouvia, mas não lia, e só depois preparei a versão escrita traduzida. Foi então que tive de fazer as adaptações pra leitura comum, novamente confrontando com o livro impresso, mas tomei a liberdade de tirar os sinais de ponto-e-vírgula do original e refundir os parágrafos de acordo com critérios de lógica, e não de ritmo. Seguem abaixo o vídeo legendado e a tradução em português:


Ao povo da Nação Argentina.

O País passa por uma das fases mais difíceis de sua história. Levado para muito próximo da desagregação, a intervenção das Forças Armadas constituiu a única alternativa possível, diante da deterioração causada pelo desgoverno, pela corrupção e pela complacência. Por diversas razões, um notável vazio de poder foi minando, numa velocidade cada vez mais rápida, as possibilidades de se exercer a autoridade, condição essencial para que o Estado se desenvolva.

As Forças Armadas, sabendo que o seguimento da normalidade não oferecia um futuro aceitável ao País, avançaram a única resposta possível a essa situação crítica. Tal decisão, baseada na missão e na própria essência das Instituições Armadas, pôs-se a ser executada com uma seriedade, responsabilidade, firmeza e equilíbrio que mereceram o reconhecimento do Povo Argentino.

Deve, porém, ficar claro que os eventos ocorridos em 24 de março de 1976 não provocaram apenas a queda de um governo. Significaram, pelo contrário, o encerramento definitivo de um ciclo histórico e a abertura de um novo, cuja característica básica residirá na tarefa de reorganizar a Nação, executada com real vocação de serviço pelas Forças Armadas. Este processo de reorganização nacional demandará tempo e esforços, requererá uma grande disposição para a convivência, exigirá de cada um sua porção de sacrifício pessoal e deverá contar com a confiança sincera e efetiva dos argentinos. Conseguir essa confiança, entre todas as missões, é a mais difícil que nos impusemos.

Durante muitos anos, foram tantas as promessas descumpridas, tantos os planos e projetos fracassados e tão profunda a frustração nacional, que muitos de nossos compatriotas deixaram de crer nas palavras de seus governantes e chegaram a acreditar até mesmo que o poder público não é espaço a quem quer servir, mas ser servido por ele, convencendo-se de que a justiça sumiu de vez do horizonte do homem argentino.

Começaremos, portanto, estabelecendo uma ordem justa, dentro da qual o trabalho e o sacrifício valham a pena, na qual os frutos do empenho se transformem em melhores condições de vida para todos, na qual encontrem apoio e estímulo os cidadãos honestos e exemplares, na qual sejam severamente punidos os que violarem a lei, qualquer que seja seu posto hierárquico, seu poder ou sua presumida influência. Assim, recuperaremos a confiança e a fé do povo nos governantes, e assim lançaremos o ponto de partida indispensável para enfrentar a grave crise que nosso país está atravessando. Por isso, não preciso descrever as dramáticas condições na qual vive a Nação: cada um dos que habitam a Pátria as conhece e sofre com elas todos os dias da pior forma possível. Contudo, merecem ser apontados alguns dos elementos mais destacados desta situação.

Nunca foi tão grande a desordem no funcionamento do Estado, gerido com ineficiência num contexto de corrupção administrativa generalizada e de demagogia complacente. Pela primeira vez em sua história, a Nação quase chegou a declarar moratória. Uma direção econômica vacilante e pouco realista levou o País rumo à recessão e ao início do desemprego, com sua inevitável sequela de angústia e desânimo, herança que recebemos e que trataremos de remediar. O uso indiscriminado da violência por um ou outro grupo submeteu os habitantes da Nação a um clima de insegurança e de medo sufocante. E por fim, a falta de capacidade das instituições, demonstrada em suas tentativas fracassadas de apresentar a tempo as soluções urgentes e profundas que o país requeria, levou a uma paralisia completa do Estado, diante de um vazio de poder incapaz de dinamizá-lo.

Cada um desses sinais marcou o final de uma fase que estava em declínio inevitável e que era incapaz de gerar sua própria sucessora. As Forças Armadas participaram com absoluta responsabilidade do processo institucional, assumindo decididamente seu papel, sem prejudicar em nenhum grau a gestão do Governo. Prova irrefutável disso é que elas se empenharam, de ponta a ponta do País, numa vitoriosa luta contra os delinquentes subversivos. O sangue generoso de seus heróis e seus mártires assim o determina.

Respeitando profundamente os poderes constitucionais, esteios naturais das instituições democráticas, as Forças Armadas fizeram chegar, em repetidas ocasiões, advertências educadas sobre os perigos que acarretavam tanto as omissões quanto as medidas insensatas. Sua voz não foi escutada, não foi adotada nenhuma medida substancial para respondê-la. Diante disso, toda esperança por mudanças respeitando os marcos institucionais foi totalmente rebaixada.

Diante desta situação dramática, as Forças Armadas assumiram o governo da Nação. Essa atitude, assumida consciente e responsavelmente, não está motivada por interesse ou cobiça pelo poder. Responde apenas ao cumprimento de uma obrigação inescapável, derivada da missão específica de proteger os mais altos interesses da Nação. Diante desse imperativo, as Forças Armadas preencheram, como instituição, o atual vazio de poder, e também como instituição, deram uma resposta à conjuntura nacional por meio da fixação de objetivos e pautas para as ações que o governo desdobrará, inspirados numa autêntica vocação para servir à Nação.

Para nós, o respeito aos direitos humanos não deriva só das imposições da lei ou das declarações internacionais, mas também é o fruto de nossa convicção cristã e arraigada a respeito da superior dignidade do homem como valor fundamental. E é justamente para assegurar a devida proteção dos direitos naturais do homem que assumimos o pleno exercício da autoridade. Não para violar a liberdade, mas afirmá-la. Não para sufocar a justiça, mas impô-la.

Restabelecendo a vigência de uma autoridade que será revitalizada em todos os níveis, cuidaremos da ordenação do Estado, cuja ação se baseará na estabilidade e manutenção das normas jurídicas, garantindo o império da lei e sua obediência pelos governantes e governados. Um Estado arrumado nos permitirá prover a Nação do instrumento capaz de impulsionar uma tarefa de transformação profunda.

Como não aceitamos que o Estado seja um mero espectador do processo, ele deverá monopolizar o uso da força e, em decorrência disso, só suas instituições cumprirão as funções ligadas à segurança interna. Utilizaremos essa força sempre que for preciso, para garantir a plena vigência da paz social. Com esse objetivo combateremos sem trégua os delinquentes subversivos em qualquer uma de suas manifestações, até serem totalmente neutralizados.

Durante muitos anos, sob o pretexto de defender a gestão estatal, ficaram sob monopólio público grandes projetos indispensáveis para o desenvolvimento nacional e o bem-estar do povo, que nunca foram concretizados. Hoje, todos pagamos o preço. No serviço público, a eficácia é a exceção, e a deficiência é a regra. Um crescimento sufocado pela ruína dos setores cruciais da economia e a dependência do exterior para fornecer matérias primas indispensáveis resultaram muitas vezes da recomendação de quem nada fez nem permitiu fazer. O Governo, a partir de agora, direcionará sua ação para a solução pragmática dos grandes problemas econômicos.

Com garantias à soberania nacional e mantendo o controle do Estado sobre as áreas vitais relativas à segurança e ao desenvolvimento, cederemos à iniciativa privada e aos capitais internos e externos todas as condições necessárias para que participem com o máximo de potencial e de força criativa na exploração racional dos recursos. Temos consciência do valioso aporte que pode oferecer à nossa independência financeira, tecnológica e econômica a ação decidida dos empresários, e por isso a impulsionaremos com todos os recursos do Estado, mas garantndo que os interesses econômicos não interfiram no exercício dos poderes públicos. Regras claras, precisas e constantes de jogo serão os melhores instrumentos para impulsionar investimentos e recuperar nossa atividade produtiva.

Promoveremos a relação harmônica entre o capital e o trabalho por meio do fortalecimento de estruturas empresariais e sindicais limitadas às suas finalidades específicas, que representem fielmente e tenham plena consciência dos potenciais do País. Os trabalhadores, que tantas vezes foram alvo de enganação e tantas vezes viram esvaecer promessas e esperanças, devem saber que o sacrifício exigido pela tarefa de reorganização nacional será suportado por todas as camadas sociais e que durante o desenrolar do processo e, em especial, durante a distribuição teremos a mesma firmeza para defender seus direitos que hoje demonstramos para exigir seu esforço.

Nossa geração vive uma crise de identidade, que se manifesta num questionamento permanente dos valores tradicionais de nossa cultura e assume, em muitos casos, as concepções niilistas da subversão antinacional. A cultura, como um modo singular de expressão da arte, da ciência ou do trabalho de nosso Povo, será, portanto, impulsionada e enriquecida. Estará aberta ao influxo das grandes correntes de pensamento, mas sempre se manterá fiel a nossas tradições e à concepção cristã sobre o mundo e o homem. É exatamente sobre essa base, nossa individualidade histórica, que a Argentina deve alinhar-se, de hoje em diante, com as nações que deixam o homem realizar-se como pessoa, com dignidade e em liberdade.

Em função de interesses comuns, manteremos relações com todos os países do mundo. Em sólida coalizão com os países latino-americanos, devemos edificar vínculos sinceros, baseados no respeito, no apoio e na colaboração mútuos. Porém, também deve ficar claro que as Forças Armadas não estão dispostas a renunciar, e jamais o farão, a nossos direitos e soberania, e que assim como abrem generosamente as portas do País à contribuição cultural e material estrangeira, não permitirão que nenhuma nação ou grupo interfira em assuntos que são da alçada exclusiva do Estado Argentino.

Por tudo isso, afirmamos que o processo de reorganização nacional não está voltado contra nenhum grupo social ou partido político. Ao contrário, consiste em recolocar nos trilhos a vida do País e tem a ambição de promover uma mudança da atitude argentina em relação à sua própria responsabilidade individual e social. Em resumo, destina-se a desenvolver ao máximo nossas potencialidades. Ele é dedicado a todo grupo de argentinos, sem distinções, pois é requerida sua incorporação e participação de hoje em diante. É uma convocação para que, fruindo a maturidade que nos deixam as experiências políticas vividas, sejamos capazes de recuperar a essência do ser nacional e de imaginar e realizar um futuro ordenamento que nos faculte o exercício de uma democracia com real representatividade, sentido federalista e concepção republicana.

As Forças Armadas impuseram uma suspensão das ativdades dos partidos políticos para ajudar na pacificação interna. Contudo, reiteram sua decisão de garantir no futuro a ação de movimentos de opinião, de real expressão nacional e com provada vocação de serviço. Uma atitude similar determina a atuação na área corporativa, tanto de operários quanto de empresários. As organizações do capital e do trabalho deverão adequar o exercício de suas funções à defesa das legítimas aspirações de seus integrantes, evitando incursionar em áreas alheias à suas incumbências. Além disso, confiamos em que trabalhadores e empresários terão consciência dos sacrifícios que esses primeiros tempos exigem e da inescapável necessidade de adiar exigências que são justas em dias de prosperidade, mas ficam inatingíveis em situações emergenciais.

As Forças Armadas sabem que o esforço que todos fazemos hoje tem um herdeiro natural: a juventude argentina. A ela oferecemos a autenticidade de nossas ações, a pureza de nossas intenções e nosso trabalho incansável. Dela pedimos sua força criadora, seus ideais patrióticos, seu senso de responsabilidade no estudo e no trabalho, sua participação no processo que está começando, para que, num marco de oportunidades iguais, ele se realize exclusivamente em pleno benefício da Pátria.

Esta imensa tarefa a que nos lançamos tem um beneficiário único: o Povo Argentino. Todas as medidas de governo estarão direcionadas à obtenção do bem-estar geral por meio do trabalho fecundo, com um senso inegável de justiça social para modelar uma sociedade pujante, organizada, solidária, preparada espiritual e culturalmente para forjar um futuro melhor. Ninguém deve esperar soluções imediatas nem mudanças gigantes na atual situação.

As Forças Armadas têm consciência da magnitude da tarefa a realizar, conhecem os problemas profundos a resolver, sabem dos interesses que se oporão nesse caminho que todos devemos percorrer com solidariedade. Porém, temos de atravessá-lo com firmeza, uma firmeza que se expressa em nossa decisão de levar a cabo o processo sem concessões e com uma profunda paixão nacional. As Forças Armadas convocam o Povo Argentino a exercer toda a responsabilidade nos marcos da tolerância, união e liberdade, na luta por um amanhã de grandeza irrecusável.

Chegou a hora da verdade. O Governo Nacional, ao formular esta sincera e honesta convocação ao Povo da Pátria, não procura gerar atitudes espontâneas de participação no processo. Sabemos perfeitamente que as manifestações de adesão a ele serão fruto dos êxitos positivos que conseguirmos mostrar ao Povo da República. Aspiramos, sim, como base mínima e indispensável para apoiar nossa ação, à compreensão ampla e generosa de todos os setores inspirados pelo bem comum.

Solicitamos que entendam as razões que motivaram a opção tomada. Solicitamos que entendam as pautas diretoras impostas ao processo de reorganização nacional. Solicitamos que entendam os esforços que devemos exigir de cada argentino como contribuição inadiável. Sabemos que com essa compreensão inicial seremos capazes de promover os feitos necessários para obter o apoio de todos aqueles que, convencidos da sinceridade de nossos projetos e da viabilidade dos objetivos mostrados, haverão de participar fervorosamente da concretização de um grande país.

O passado imediato ficou para trás, sua carga de frustração e confusão foi superada. Entramos num futuro que levará à grandeza da Pátria e à felicidade de seu povo. O Governo Nacional não oferece soluções fáceis ou milagrosas. Ao contrário, pede e realizará sacrifícios, esforços e austeridade. Garante de fato uma conduta honrada, uma ação eficiente e um proceder justo, voltado sempre, acima de qualquer outra consideração, para o bem comum e os altos interesses nacionais.

Chegou a hora da verdade. Uma verdade que é, resumindo, nosso compromisso total com a Pátria. Na concretização deste intento que lançamos hoje, peço ao Nosso Senhor Deus que conceda a todos nós sabedoria para podermos escolher o melhor caminho, firmeza para jamais sairmos do rumo certo, prudência para sermos justos, e humildade para servirmos sem ser servidos.