quarta-feira, 25 de maio de 2016

Religião e vida (poema irreligioso meu)


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Este é um longo poema antigo meu que escrevi a 9 de julho de 2010, no auge da minha contestação religiosa e leitura de livros ateístas. Espero que gostem! Divulgação livre, desde que citada a fonte e o autor. Uns anos atrás o mandei para publicação na revista eletrônica Arcádia, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp), mas eles amigavelmente recusaram dizendo que era ousada hoje em dia a iniciativa de criar uma peça com rima e métrica certinhas, mas que justamente esse formato não combinava com o tema e vocabulário “prosaicos” que eu estava abordando. (Sei bem o que pessoas desacostumadas a ler ou escrever mais de meia página não acham “prosaico”, e sei do deboche com que nossos meios “artísticos” tratam hoje o lado da transpiração exigido outrora pela poesia...)

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Aos que acreditam no além deste mundo,
Advertência dou em boa hora:
Porquanto o fim de tudo é o moribundo,
Melhor viver com fé o aqui e agora. (*)

Tivemos sempre mil necessidades,
Como a de dominar a natureza:
Assim, o ser humano, em tenra idade,
Sacralizou-a em toda inteireza.

Qualquer cultura tinha seu sagrado
Nas preces, danças e feitiçaria,
E junto às gentes construiu-se o fado
De conviver com toques de magia.

Os povos sedentários, mais complexos,
A isso deram ar de instituição
Com o poder de irradiar reflexos
No Estado, em artes e na produção.

Os deuses clássicos são forte exemplo
Da busca por fartura nesta vida:
Terrenos eram rituais e templos
Com sexo, oferendas e bebidas.

Mas coetâneo era o “povo eleito”,
Destino cujo foi vagar a esmo
No mundo, professando seu deus feito
À semelhança e imagem de si mesmo.

Seu fruto sumo foi um bom profeta
De confissão também monoteísta.
O seu caráter e conduta reta
Tomaram dimensão jamais tão vista.

Porém, a consequência foi conforme
Ao que seu coração na Bíblia almeja?
Literalmente é justo que se tome
“És Pedro, em ti construo minha igreja”?

A glória deu-se em mãos de um tarsiota
De ideias duvidosamente sãs
E de um imperador que logo enxota
Herança e civilização pagãs.

Trezentos anos vão-se, e entra em cena
No meio de um ardente e vil deserto
Um mercador de fúria não pequena,
Mas com um raciocínio muito esperto.

Em seu entorno reuniu soldados
Com um objetivo bem preciso:
Erguer um grande império, califados,
Em troca do mais belo Paraíso.

O mundo, todavia, é mais diverso
Do que vos mostra este ocidental
Que se manteve, nestes pobres versos,
Nos que gestaram um poder global.

Xamãs, Confúcio, Buda e os hindus
Conceitos tinham sobre a transcendência,
E os xintos, persas, índios e vodus
Buscavam a seu modo a excelência.

Mas permiti-me agora retornar
A um contexto rude noutras terras:
Se as crenças dão de se diferenciar,
Já há motivos para muitas guerras.

Na Renascença débil, pois, floresce
A primazia da inteligência:
A ignorância um pouco se arrefece,
Mas as fogueiras teimam na indecência.

Nesse intervalo, um monge irrequieto
Cindiu os europeus cristãos em dois.
Noventa e cinco teses de protesto
Instaram mais rebeliões depois.

Só no contexto revolucionário
Apareceu ideia mais prosaica:
Do mando de arcebispos e vigários
Passar à consciência livre e laica.

A dica, difundida por libelos,
Abriu picadas para o mais moderno,
Mas se um tirano pôs-se a promovê-lo,
Não se mostrou solidamente eterno.

A Aliança Santa, por si só,
Por muitas décadas paralisou
De um ideário o grandioso sol
De paz, justiça, liberdade e amor.

Contudo, o Oitocentos da ciência,
De Comte, Darwin, Marx e outros seus
Legou, com todas essas experiências,
Descrença, incerteza, o “fato ateu”.

Salvar os cânones supersticiosos
Só trouxe o envolvimento em grandes tramas,
Conluio co’os poderes mais maldosos,
Contradição, vergonha, erro e dramas.

Aumenta a gama de contestadores
Das regras e tolices ressentidas:
Repulsa a formas tão plurais de amores
E uma suposta “defesa da vida”.

Por outro lado, o dos aiatolás,
Os partidários da tal “guerra santa”
Explodem prédios, brincam com antraz,
Se tornam bombas por besteiras tantas.

Não nego o mérito de muitos gênios
De religiosidade angelical,
Mas mente aberta faz com que condene-os
A ortodoxia oficial.

Os deuses certamente são engodo
E os livros santos, ídolos de barro:
Derretem fácil, fluem como lodo
Na exposição ao mais humilde sarro.

Mas mesmo assim me encontro precavido
De todo endeusamento da matéria:
Será que temos um sexto sentido
P’ra ver do cosmos uma parte etérea?

O relevante, enfim, desta obra nova
É o uso da razão como instrumento,
Não crer em qualquer asserção sem provas,
Por mais que sirva de gostoso alento.

O que desejo aqui deixar premente
É muito simples de se assimilar:
Vivei com força o momento presente,
Pois sabe quem se além disso algo há?




(*) Confidências e modéstia à parte, eu queria esta estrofe inscrita em minha lápide...