sábado, 20 de maio de 2023

V. Sorotiuk sobre o ruscismo (рашизм)


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Tomei a liberdade de republicar sem autorização prévia “Le mort saisit le vif ! (Os mortos apoderam-se dos vivos!): O ruscismo”, mais um artigo de Vitorio Sorotiuk, presidente da Representação Central Ucraniano-Brasileira, que circulou nas redes sociais. Seu objetivo é explicar o conceito de рашизм (rashízm), um neologismo criado pelos ucranianos que mistura as palavras “russo” e “fascismo”, com alusão à pronúncia inglesa de Russia, que é “râsha”. Não sei se essa era a versão definitiva, mas eu mesmo fiz correções e adaptei ao estilo da página.

O aportuguesamento da palavra saisit do francês levou à existência do termo “saisina” que, em termos populares, significa o direito de herança. Estabelece nosso Código Civil no artigo 1784 que, “Aberta a sucessão, a herança transmite-se desde logo aos herdeiros legítimos e testamentários.” E, além dos cuidados com o legado que os herdeiros se apossam, os que mais se identificam com o de cujus tomam muito cuidado com os seus restos mortais e sua memória.

Os restos mortais do príncipe russo Grigori Aleksandrovich Potiomkim (1739-1791) repousavam em uma catedral de pedra do século 18, em Kherson, até recentemente. Com a contraofensiva ucraniana que reocupou a cidade, uma missão especial dada às forças armadas russas foi roubar a ossada de Potiomkim para levá-la à Rússia. Foi Grigori Potiomkim quem convenceu a sua amante, a imperatriz russa Catarina, a Grande (1729-1796), a anexar a Crimeia, em 1783, e buscou criar uma Nova Rússia – um domínio que se estendia pelo território que hoje é o sul da Ucrânia, margeando o mar Negro. Quando Vladimir Putin determinou a invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022, evocou a visão de Potiomkim.

Antes, Vladimir Putin havia determinado a transferência dos restos mortais do “ideólogo” Ivan Ilin (1883-1954) da Suíça para a Rússia; e, em 2009, consagrou o seu túmulo. Putin vem mencionando e citando Ivan Ilin em seus discursos desde 2005. Encerrou o seu discurso em 30 de setembro de 2022, quando da anexação ilegal das províncias de Luhansk e Donetsk, o citando novamente. Seus livros são leitura obrigatória para todos os funcionários do governo. Ivan Ilin foi expulso da Rússia, em 1922, por determinação de Vladimir Lenin (1870-1924); e no exílio tornou-se o ideólogo do Movimento Branco, facção monarquista que defendia o retorno do tsarismo e um defensor da ideologia fascista. Foi defensor de Hitler, Mussolini e Franco mesmo depois do fim da Segunda Guerra Mundial.

As características imperialistas e fascistas do novo regime russo, alicerçado após o fim da União Soviética, compõem, sem dúvida alguma, o acervo da herança guardada com zelo por Vladimir Putin. O historiador Timothy Snyder afirmou, em artigo publicado no New York Times, que “a Rússia de hoje atende à maioria dos critérios que os estudiosos tendem a aplicar. Tem um culto em torno de um único líder, Vladimir Putin. Possui um culto aos mortos, organizado em torno da Segunda Guerra Mundial. Tem um mito de uma era de ouro passada de grandeza imperial, a ser restaurada por uma guerra de violência curadora – a guerra assassina na Ucrânia.” Os filósofos e cientistas sociais, sem desconsiderar essa herança, se debruçam, entretanto, para caracterizar o novo regime sob outra denominação tendo em vista as características atuais do fenômeno social e político russo.

A Verkhovna Rada, parlamento supremo da Ucrânia, adotou, no início deste mês de maio, uma resolução “Sobre o uso da ideologia do ruscismo pelo regime político da Federação Russa”, condenando os fundamentos e práticas do ruscismo como totalitários e misantrópicos. A letra “f” da palavra “fascismo” foi substituída pelo “r” em referência à Rússia (фашизм = рашизм). Para o português seria mais literal o “rascismo”, mas a tradução como ruscismo dá o real conteúdo de referência expressa pelos ucranianos. O termo ruscismo começou a ser usado no discurso público após a guerra de 2008 na Geórgia; ganhou maior popularidade após a anexação da Crimeia pela Rússia e o início da agressão russa, em 2014; e, agora, é termo oficial por lei na Ucrânia.

A conceituação estabelece que o ruscismo é a ideologia usada pelas autoridades da Federação Russa e a forma do atual fascismo russo. São consequência dessa ideologia a violação em massa e sistemática dos direitos humanos, tanto dentro da Federação Russa quanto nos territórios ocupados da Ucrânia. As liberdades de reunião, manifestação, partidária, assim como o feminismo e a liberdade sexual e comportamental são vistas pela Rússia como “degeneração” da sociedade ocidental. A menor dissidência na Rússia é vista como traição aos interesses nacionais. Atualmente, está proibida a palavra “guerra” e quem a use está sujeito à prisão. Os oponentes políticos ou são mortos envenenados ou presos quando têm sorte.

O nacionalismo russo é a base da ideologia do Estado onde se aplica o conceito do Russki mir (o “Mundo Russo”): o autoengrandecimento da Rússia e dos russos às custas da opressão violenta, da negação do direito à autodeterminação ou, em geral, do direito à existência de outros povos. A Ucrânia, para Vladimir Putin, é uma invenção de Lenin. Essas ideias agora estão sendo plantadas agressivamente nos territórios ocupados da Ucrânia e são acompanhadas pela proibição de tudo o que é ucraniano.

“Entendemos o ruscismo como um novo tipo de ideologia e prática totalitária, que está no cerne do regime que se formou na Federação Russa, sob a liderança do presidente V. Putin; e é baseado nas tradições do chauvinismo e do imperialismo russos, nas práticas do regime comunista da URSS e do nacional-socialismo”, diz, em comunicado oficial, a Verkhovna Rada.

Segundo Anne Applebaum, em entrevista concedida à BBC: “ruscismo é uma forma de colonialismo ou ‘hiperimperialismo’ da Rússia moderna. Este é um Estado que se percebe tão superior aos seus vizinhos, pelo menos se falamos da sua elite, que se julga no direito de os apagar da face da terra, do mapa-múndi, de destruí-los à vontade, para matar seus civis – e não apenas soldados.”

O historiador Timothy Snyder diz que “fascistas chamando outras pessoas de fascistas” é o fascismo levado ao seu extremo ilógico como um culto à irracionalidade. É um ponto final onde o discurso de ódio inverte a realidade e a propaganda é pura insistência. É o apogeu da vontade sobre o pensamento. Chamar os outros de fascistas, sendo fascista, é a prática essencial de Putin. Jason Stanley, um filósofo americano, chama isso de “minar a propaganda”. Chamei isso de “esquizofascismo”. Os ucranianos têm a formulação mais elegante: eles chamam isso de ruscismo (“rashism” em inglês).

O fascínio com as obras de Ivan Ilin revela a paixão pelo chauvinismo russo e a busca pelo retorno à “grandeza” do Império Russo, sepultado pela revolução de 1917. O esforço de Vladimir Putin para trazer à Rússia os restos mortais do ideólogo do Estado forte e defensor do nazismo e fascismo indica claramente a assunção da herança do nazifascismo de Hitler e Mussolini. O roubo dos restos mortais de Gregori Potiomkim, em Kherson, revela a assunção da herança imperialista e despótica da Rússia.

Esse acervo hereditário, misturado com revanchismo contra a história, onde a Rússia caiu por seus próprios pecados, edificou a nova ideologia e prática denominada de ruscismo. O ruscismo é nome do coquetel venenoso que embebedou a elite russa com a maldita herança da maldade humana.