Este é um dos últimos textos de Leyba Bronshteyn (Leon Trotsky) que estava guardado em meus backups aguardando tradução. Como disse antes, muita coisa desse período, vinda das mais variadas personalidades, não achei digna de traduzir e apenas transferi os originais pra minha biblioteca pública. Porém, um texto do dissidente ucraniano me chamou a atenção e decidi trazer uma versão em português: trata-se da “Carta aos trabalhadores da URSS” (Письмо рабочим СССР), escrita em março de 1929 e publicada em Paris, em julho seguinte, na primeira edição (n. 1-2) do Boletim da Oposição (bolcheviques leninistas).
É preciso rolar um pouco pra baixo a referida página até acharmos a carta em questão. Porém, o site como um todo é um grande portal de referência sobre a obra e a militância de Trotsky, e se você sabe russo, pode se deliciar com os originais disponíveis! O estudo do Boletim da Oposição diretamente do original seria uma atividade tão saudável quanto a exploração de suas Obras completas, caídas em domínio público e também digitalizadas há poucos anos. Não sou um fã de Trotsky nem do regime soviético como um todo, mas a leitura de seus escritos é tão mais saudável quanto seus atuais “detratores”, em geral stalinistas sem erudição, se valem de um mero copia-e-cola da propaganda da década de 1930 e a usam como “material primário confiável”.
O boletim dos exilados foi publicado em russo até o n. 87 de agosto de 1941, sucessivamente em Paris, Berlim, Paris de novo (nazismo obrigando) e enfim Nova York (após invasão alemã da França). Entre outras figuras, nele também contribuiu Christian Rakovski, soviético de etnia búlgara também imolado por Stalin, biografado genialmente por Pierre Broué e que me foi apresentado pelo prof. Alvaro Bianchi. Mantive um estilo mais formal do português e adicionei explicações entre colchetes, abrindo uma única nota de rodapé excepcional.
Ainda sobre a tradução, a palavra russa “rabóchi” pode ser traduzida mais estritamente como “operário”, mas no texto inteiro, inclusive no título, acabou ficando “trabalhador” mesmo. Trotsky assina de “Constantinopla”, que não hesitei em atualizar como Istambul, onde ele viveu parte de seu exílio iniciado em 1929. Por fim, onde se encontrar “PC da URSS”, é minha tradução, e igualmente a mais consagrada, de “VKP”, significando “KP” Partido Comunista e “V” vsesoiúznaia, ou seja, “de toda a União” (ou apenas “soviético”, se quiser). “PCUS”, tradução literal da sigla “KPSS”, refere-se apenas ao partido a partir de fins de 1952.
Caros camaradas!
Escrevo-lhes para lhes dizer mais uma vez que os Stalin, os Iaroslavski & Cia. estão os enganando. Estão lhes dizendo que recorri à imprensa burguesa para travar uma luta contra a República Soviética, em cuja formação e defesa trabalhei de mãos dadas com Lenin. Estão os enganando. Eu recorri à imprensa burguesa a fim de defender os interesses da República Soviética contra a mentira, o engano e a traição de Stalin et caterva.
Estão os mandando condenar meus artigos. Acaso vocês os leram? Não, vocês não os leram. Estão lhes dando uma tradução mentirosa, forjada de pequenos trechos isolados. Meus artigos foram publicados em russo numa brochura individual do jeito exato em que eu os escrevi. Exijam que Stalin os reimprima sem abreviações nem falseamentos! Ele não terá coragem. É mais provável que ele tema a verdade. Quero expor aqui o conteúdo básico de meus artigos.
1. Na resolução da GPU sobre meu exílio, afirma-se que lidero a “preparação de uma luta armada contra a República Soviética”. No Pravda, as palavras sobre uma luta armada foram omitidas. Por quê? Porque no Pravda (n. 41, 19 de fevereiro de 1929) Stalin não ousou repetir o que foi afirmado na resolução do GPU. Porque ele sabia que ninguém acreditaria nele. Após a história com o oficial de Wrangel, após ter sido desmascarado o agente provocador enviado secretamente por Stalin para propor aos oposicionistas uma conspiração armada, depois de tudo isso ninguém acreditará que os bolcheviques leninistas que desejam convencer o partido da justeza de suas visões estejam preparando uma luta armada. Foi por isso que Stalin não teve a coragem de mandar publicar no Pravda o que foi afirmado na resolução da GPU de 18 de janeiro. Mas afinal, em tal caso, de que serviria inserir essa óbvia mentira na resolução da GPU? Não para a URSS, mas para a Europa, e para o mundo inteiro. Por meio da agência TASS, Stalin cotidianamente colabora sistematicamente com a imprensa burguesa do mundo inteiro, difundido sua calúnia contra os bolcheviques leninistas. De outra forma, Stalin não podia explicar o exílio e as incontáveis prisões como prova da preparação de uma luta armada pela oposição. Com essa monstruosa mentira, ele causou um enorme dano à República Soviética. Toda a imprensa burguesa falou sobre como Trotsky, Rakovski, Smilga, Radek, I. N. Smirnov, Beloborodov, Muralov, Mrachkovski e muitos outros que construíram e defenderam a República estão agora preparando uma luta armada contra o Poder Soviético. Está claro até que grau tal pensamento deve enfraquecer o Poder Soviético aos olhos do mundo inteiro! Para justificar as repressões, Stalin é obrigado a criar narrativas monstruosas que estão causando um dano incalculável ao Poder Soviético. Foi por isso que considerei indispensável falar à imprensa burguesa e dizer ao mundo inteiro: não é verdade que a oposição esteja se preparando para conduzir uma luta armada contra o Poder Soviético. A oposição conduzir e conduzirá uma luta implacável pelo Poder Soviético contra todos os seus inimigos. Essa minha declaração foi reproduzida em dezenas de milhões de exemplares em línguas do mundo inteiro. Ela serve para consolidar a República Soviética. Stalin quer reforçar sua própria situação, enfraquecendo a República Soviética. Eu quero reforçar a República Soviética, desmascarando as mentiras dos stalinistas.
2. Há muito tempo já, Stalin e sua imprensa difundem no mundo inteiro a informação de que eu supostamente teria declarado que a República Soviética se tornou um Estado burguês, que o poder proletário morreu e coisas assim. Na Rússia, muitos trabalhadores sabem que essa é uma calúnia maliciosa, baseada em citações falseadas. Desmascarei essa falsidade dezenas de vezes em cartas que transmiti de mão em mão. Mas a imprensa burguesa mundial acredita nisso ou finge que acredita. Todas as citações falseadas por Stalin passeiam pelas colunas dos jornais do mundo inteiro, demonstrando como se Trotsky admitisse a inevitabilidade da morte do Poder Soviético. Graças ao enorme interesse da opinião pública mundial, sobretudo das amplas massas populares, pelo que está se passando na República Soviética, os jornais burgueses, impelidos por seus interesses mercadológicos, por sua ânsia em circular e pela pressão dos leitores, estão se vendo obrigados a publicar meus artigos. Nesses artigos, afirmei ao mundo inteiro que o Poder Soviético, apesar da política errônea da direção de Stalin, está profundamente enraizado nas massas, é muito forte e sobreviverá a seus inimigos.
Não se deve esquecer que a esmagadora maioria dos trabalhadores na Europa, em especial nos EUA, continuam se informando pela imprensa burguesa. Impus como condição que meus artigos fossem publicados sem quaisquer alterações que fossem. É verdade que determinados jornais em alguns países desobedeceram a essa condição, mas a maioria a obedeceu. Em todo caso, todos os jornais viram-se obrigados a publicar que, apesar das mentiras e calúnias dos stalinistas, Trotsky está convencido da profunda força interior do regime soviético e acredita firmemente que os trabalhadores, por meios pacíficos, conseguirão mudar a atual política mentirosa do Comitê Central.
Na primavera de 1917, Lenin, confinado em seu isolamento suíço, valeu-se do trem “blindado” dos Hohenzollern para lançar-se junto aos trabalhadores russos. A imprensa chauvinista investiu contra Lenin, chamando-o nada menos do que mercenário alemão e “Herr Lenin” [“senhor” em alemão]. Confinado pelos termidorianos no isolamento em Istambul, vali-me do trem blindado da imprensa burguesa para dizer a verdade ao mundo inteiro. Tola em sua devassidão, a investida dos stalinistas contra “Mister Trotsky” constitui uma mera repetição da investida burguesa e socialista revolucionária [ligada aos “SR”] contra “Herr Lenin”. Eu, assim como Ilich e com um tranquilo desdém, encararei a opinião pública dos filisteus e burocratas cuja alma se encarna em Stalin.
3. Em meus artigos distorcidos e falsificados por Iaroslavski, contei como, por que e sob que condições fui expulso da URSS. Os stalinistas estão espalhando na imprensa europeia o boato de que eu teria sido mandado ao exterior por solicitação própria. Também desmascarei essa mentira. Contei que fui expulso para o exterior à força, por meio de um acordo prévio entre Stalin e a polícia turca. E aqui atuei não somente nos interesses de minha proteção pessoal contra calúnias, mas também e antes de tudo nos interesses da República Soviética. Se os oposicionistas visassem deixar as fronteiras da União Soviética, ficaria claro para o mundo inteiro que supostamente teríamos considerado irremediável a situação do governo soviético. Entretanto, não há sequer resquícios disso. A política de Stalin desferiu terríveis golpes não somente na revolução chinesa, no movimento operário inglês e em toda a Comintern, mas também na estabilidade interna do regime soviético. Isso é indiscutível. Porém, a causa não foi abalada de forma alguma. Em nenhuma hipótese a oposição está se preparando para fugir da República Soviética. Recusei-me categoricamente a deixar o país, sugerindo que me trancassem na cadeia. Os stalinistas não ousaram recorrer a esse método, pois temiam que os trabalhadores se obstinassem em obter minha soltura. Preferiram chegar a um acordo com a polícia turca e forçaram minha deportação para Istambul. Expus isso para o mundo inteiro. Cada trabalhador bem-pensante dirá que se Stalin, por meio da TASS, alimenta diariamente a imprensa burguesa com calúnias contra a oposição, então eu era obrigado a agir para desmentir essas calúnias.
4. Em dezenas de milhões de exemplares, contei ao mundo inteiro que fui exilado não pelos trabalhadores russos, não pelos camponeses russos, não pelo Exército Vermelho soviético, não por aqueles com quem conquistamos o poder e combatemos ombro a ombro em todas as linhas de frente da guerra civil; fui exilado pelos apparatchiks que tomaram o poder em suas mãos, se transformaram numa casta burocrática que está ligada pelo encobrimento mútuo. Para defender a Revolução de Outubro, a República Soviética e o nome revolucionário dos bolcheviques leninistas, eu disse para o mundo inteiro a verdade sobre Stalin e os stalinistas. Lembrei mais uma vez que Lenin, em seu “Testamento” cuidadosamente elaborado, chamou Stalin de desleal. Essa palavra é compreensível em todas as línguas do mundo. Ela designa um indivíduo inescrupuloso ou desonesto que é dirigido por impulsos vis em suas ações, um indivíduo no qual não se deve confiar. Foi assim que Lenin caracterizou Stalin, e estamos vendo novamente quão correta estava sua advertência. Para um revolucionário, não há crime maior do que enganar seu próprio partido e envenenar a consciência da classe operária com mentiras. Todavia, nisso consiste a principal ocupação de Stalin. Ele está enganando a Comintern e a classe operária mundial, imputando à oposição ações e intenções contrarrevolucionárias para com o Poder Soviético. Foi exatamente por essa inclinação interna a tal modo de agir que Lenin chamou Stalin de desleal, foi exatamente por isso que ele propôs ao partido remover Stalin de seu posto. Depois de tudo o que aconteceu, é tão mais necessário agora esclarecer perante o mundo inteiro como se expressava a deslealdade, isto é, a falta de escrúpulos e a desonestidade de Stalin para com a oposição.
5. Os caluniadores (Iaroslavski e outros agentes de Stalin) fazem barulho a respeito dos dólares americanos. Em outras condições, é pouco provável que valesse a pena reclinar-se até esse lixo. Mas a imprensa burguesa mais malévola se deleita em revirar a sujeira de Iaroslavski. Para não deixar nada sem esclarecer, também falarei, por essa razão, sobre os dólares.
Transmiti meus artigos à agência americana de imprensa em Paris. Dezenas de vezes, tanto Lenin quanto eu demos a esse tipo de agências entrevistas e declarações escritas com nossas visões sobre essas e outras questões. Graças a meu exílio e a suas circunstâncias secretas, o interesse por esse caso foi colossal no mundo inteiro. A agência esperava ter bons lucros e me propôs metade do ganho. Eu lhe respondi que não pegaria nenhum tostão para mim, mas que a agência deveria, seguindo minha indicação, transmitir metade de seu ganho com meus artigos, e que com esse dinheiro eu editaria em russo e em línguas estrangeiras toda uma série de obras de Lenin (seus discursos, artigos cartas) qte tinham sido proibidas da República Soviética pela censura de Stalin. De forma equivalente, com esse dinheiro publicarei toda uma série de documentos partidários principais (atas de conferências e congressos, cartas, artigos etc.) que são escondidos do partido somente porque escancaram o quão infundado é Stalin em teoria e política. É essa a literatura “contrarrevolucionária” (nas palavras de Stalin e Iaroslavski) que estou preparando para publicação. No tempo devido, será publicado um relatório preciso sobre os valores para isso despendidos. Cada trabalhador dirá que é imensuravelmente melhor usar o dinheiro recebido, na forma de tributo casual, da burguesia para publicar as obras de Lenin do que usar o dinheiro tirado dos trabalhadores e camponeses russos para difundir calúnias sobre os bolcheviques leninistas. Não se esqueçam, camaradas: o “Testamento” de Lenin ainda é considerado na URSS um documento contrarrevolucionário por cuja difusão prendem e exilam. Não é por acaso: Stalin está travando uma luta em escala internacional contra o leninismo. Não sobrou quase nenhum país no mundo onde permanecessem hoje à frente de um partido comunista os revolucionários que lideraram esses partidos no tempo de Lenin. Quase todos eles foram expulsos da Internacional Comunista. Lenin dirigiu os quatro primeiros congressos da Comintern. Elaborei junto com Lenin todos os documentos básicos da Comintern. No 4.º Congresso (1922), Lenin bipartiu comigo o informe básico sobre a Nova Política Econômica [a famosa NEP] e as perspectivas da revolução internacional. Após a morte de Lenin, quase todos os participantes, em todo caso, sem exceção, todos os participantes influentes dos quatro primeiros congressos, foram expulsos da Comintern. Por toda à parte, à frente dos partidos comunistas, encontram-se pessoas novas, aleatórias, que ainda ontem estavam no campo dos adversários e inimigos. Para conduzir uma política antileninista, a primeira coisa necessária era derrubar a direção leninista. Stalin fez isso, apoiando-se na burocracia, nos novos círculos pequeno-burgueses, no aparelho de Estado, na GPU [antecessora do NKVD e, mais tarde, do KGB], nos meios materiais do Estado. Isso se produz não somente na URSS, mas também na Alemanha, na França, na Itália, na Bélgica, nos Estados Unidos, na Escandinávia, resumidamente, em quase todos os países, sem exceção. Somente um cego pode não entender o sentido do fato de os colaboradores e companheiros de luta mais próximos de Lenin no PC da URSS e em toda a Comintern, todos os participantes e dirigentes dos partidos comunistas nos difíceis primeiros anos, todos os participantes e dirigentes dos quatro primeiros congressos terem sido, quase sem exceção, removidos dos postos, difamados e expulsos. Essa luta selvagem contra a direção leninista é necessária aos stalinistas para conduzirem uma política antileninista.
Enquanto os bolcheviques leninistas eram fulminados, o partido era tranquilizado pelo fato de que a partir de então ele seria monolítico. Vocês sabem que o partido está agora mais dividido do que nunca. E isso ainda não é o fim. No caminho stalinista não há salvação. Só é possível conduzir uma política à la Ustrialov [ustriálovskaia] (1), ou seja, consequentemente termidoriana, ou uma política leninista. A posição centrista de Stalin está inevitavelmente conduzindo à acumulação de enormes dificuldades econômicas e políticas e à destruição e esfacelamento definitivos do partido.
Ainda não é tarde para mudar de rumo. É preciso mudar abruptamente e política e o regime partidário no espírito da plataforma da oposição. É preciso cessar a vergonhosa perseguição aos melhores leninistas revolucionários no PC da URSS e em todo o mundo. É preciso restaurar a direção leninista. É preciso condenar e erradicar os métodos desleais, isto é, inescrupulosos e desonestos do aparelho stalinista. A oposição está pronta para ajudar com todas as forças o núcleo proletário do partido a realizar essa tarefa vital. A caçada selvagem, as calúnias nefastas e as repressões estatais não podem obscurecer nossa relação com a Revolução de Outubro ou com o partido internacional de Lenin. Permanecemos ambos [o PC da URSS e a Comintern] fiéis até o fim – nas prisões stalinistas, no desterro ou no exílio.
Saudações bolcheviques
L. Trotsky.
Istambul, 29 de março de 1929.
(1) Referência a Nikolái Vasílievich Ustriálov (1890-1937), jurista, filósofo e político russo, precursor do “nacional-bolchevismo” e fuzilado junto a vários seguidores durante os “grandes expurgos”. Inicialmente um constitucional democrata (“cadete”), entrou para o lado dos “brancos” na guerra civil e por volta de 1921, em Praga, desenvolveu ideias encorajando a imigração a retornar à URSS e aceitar os bolcheviques. Como o novo regime, a seu ver, evoluiria para uma espécie de nacionalismo burguês, preferiu não aderir ao comunismo e se denominou “nacional-bolchevique”, refletindo sua eslavofilia de origem. As ideias de Ustrialov, atacadas por Lenin e Trotsky, ganharam aceitação limitada na URSS nas décadas de 1920 e 1930, e ele mesmo passou anos exilado na Manchúria. Voltou em 1935, tendo depois dificuldades para refazer sua vida (passado “branco” em seu rastro), até finalmente ser mandado para o GULAG.
