quinta-feira, 3 de julho de 2025

Os comunistas na Primeira República


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Mais uma rodada de fichamentos de livros sobre o movimento operário, os primeiros marxistas e a fundação do PCB na Primeira República (ou “República Velha”, como era popularmente conhecido no passado o período de 1889 a 1930), além de algumas observações críticas que deviam entrar numa primeira versão do debate historiográfico incluído na introdução de minha tese de doutorado. Fiz poucos polimentos na redação e apenas reorganizei sem muito critério, e há uma mistura de fichamentos meramente descritivos com avaliações opinativas e corretivas, mas peço ao leitor que faça a distinção entre os dois tipos. Novamente, apesar do pouco sistematismo, espero que possa ser útil pros interessados no assunto.



BATALHA, Claudio H. M. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000; BATALHA, Claudio. Revolutionary Syndicalism and Reformist in Rio de Janeiro’s Labour Movement (1906–1920). International Review of Social History, Cambridge, v. 62, p. 75-103, dec. 2017.

O artigo mais recente de Batalha é uma síntese de seu primeiro livro clássico, com acréscimos e aperfeiçoamentos conforme aos avanços posteriores da historiografia. Em ambos os casos, o objetivo é dialogar criticamente com versões consagradas sobre a história do movimento operário brasileiro durante a Primeira República, em especial das cidades do Rio de Janeiro (então capital federal) e de São Paulo, as mais industrializadas de então. O alvo principal são as denominações das diversas correntes ideológicas como “anarcossindicalista”, “sindicalista amarela”, “sindicalista revolucionária” e “anarquista”, as três primeiras jamais sendo usadas pelos próprios atores e consolidadas pelos estudiosos a partir da década de 1930. Muitas vezes com significado original sumamente pejorativo, são rótulos quase sempre surgidos da pena dos comunistas, em especial Astrojildo Pereira, que frequentemente decalcando o contexto francês à análise do Brasil, como durante o uso de “sindicalismo amarelo”, termina denominando coisas completamente diferentes do que querem dizer os nomes originais. Por muitas décadas, a análise construída pelos comunistas passou para a historiografia acadêmica sem qualquer contestação, tendo como alvo principal os sindicatos “reformistas”, como se o reformismo por si só fosse uma atitude decadente ou uma renúncia a qualquer forma de luta.

Batalha demonstra, por exemplo, que a consideração de um grupo, corrente ou mesmo indivíduo como, por exemplo, “sindicalista revolucionário” não implicava necessariamente a rejeição de práticas “reformistas” ou de conquistas parciais, ao alcance das mãos, em detrimento de um plano mais amplo de revolução social. Ademais, essas identidades não eram estanques e muitas vezes o pertencimento ideológico não obrigava a um roteiro pré-definido de práticas e símbolos, da mesma forma que a intepretação sobre o que era “ser uma coisa ou outra” variava muito entre os continentes, entre regiões do Brasil, entre grupos diferentes ou mesmo durante a vida de um mesmo indivíduo. Da mesma forma, não existe uma correlação exata entre a identidade anarquista e a prática do “sindicalismo revolucionário”, que seria em tese sua decorrência principal, ou do “sindicalismo reformista” (antes chamado de “amarelo”), pois a possibilidade de negociação e de ganhos imediatos, por exemplo, podia variar entre situações e entre regiões, sendo no Rio de Janeiro mais viável uma saída negociada e em São Paulo mais feroz a repressão patronal e estatal.

A análise de Batalha sobre as correntes ideológicas predominantes no movimento operário antes da fundação do PCB, em 1922, já desenvolvida no artigo da coletânea História do marxismo no Brasil, reaparece nos novos textos como ilustração da flexibilidade de práticas e da compreensão muitas vezes rasteira que os leitores tinham das obras socialistas, positivistas e anarquistas trazidas da Europa. Isso não implica asseverar que tais leituras eram “errôneas” ou desprovidas de sentido, pois podem ser compreensíveis à luz da conjuntura social brasileira mais ampla e não deixaram de ter impactos reais sobre a organização e a ação operárias. O positivismo, por exemplo, forneceu as reflexões para se pensar a chamada “questão social”, enquanto as doutrinas socialistas, muitas vezes contrapostas ao marxismo (ou ao que se entendia como tal), não raro elencavam pretextos morais para preferir a reivindicação pacífica e rejeitar a revolução social.

Ao modo da metodologia predominante na história social como um todo, Batalha mostra que os recortes identitários entre “anarquistas”, “sindicalistas revolucionários” e “sindicalistas reformistas” eram bastante tênues, sobretudo porque havia uma grande massa compartilhada de símbolos, linguagem, organização e práticas. Quase sempre havia uma convivência entre as formas de associação mais lúdicas, cooperativas e culturais e as mais classistas, militantes e partidárias, e a sobreposição de organizações mutualistas, clubes recreativos e sindicatos formados por diversos critérios (ramo de indústria, ofício, fábrica) era paralela à simultaneidade, no Brasil, das diversas etapas na evolução da produção industrial (doméstica, manufatura, grande fábrica). Ao contrário do que cedo aconteceu na Europa, não havia uma divisão rígida de espaços, símbolos, práticas e teorizações entre as diversas correntes, e sim uma interseção, uma circularidade ou mesmo um compartilhamento, pois havia outras identidades que muitas vezes se sobrepunham e predominavam sobre as partidárias ou mesmo as classistas. Prova disso é a própria origem de muitos dos fundadores do PCB nos meios anarquistas ou sindicais, que mantiveram ora as práticas reivindicatórias, ora a simbologia operária, quando não o próprio modo de raciocinar teoricamente. Daí que não se deve estudar a história do movimento operário brasileiro pelos rótulos que os atores se atribuíam, muito menos pelos que foram atribuídos pela literatura posterior, mas pelo modo como todos atuavam, encontravam soluções, se expressavam e defendiam seus interesses. A história do movimento durante a Primeira República, portanto, revela uma diversidade e complexidade muito grandes que não podem ser reduzidas a meras oposições entre tendências, associações, partidos (operários e socialistas, dos poucos e efêmeros que surgiram no período), oposições muitas vezes delineadas por análises de militantes posteriores que traçaram as categorias conforme a própria narrativa que legitimava seu grupo.

Um exemplo claro em que se devem evitar os juízos de valor e as medidas de comparação são a apropriação e a leitura de autores europeus entre os socialistas, anarquistas e positivistas brasileiros. Não só as edições eram bastante escassas, como também raramente apareciam em traduções, e além de tudo muitos autores consagrados, como Marx, chegavam apenas em compilações, resumos didáticos ou citações feitas por outros autores. Lidos isoladamente, terminavam saindo de seu contexto e sendo misturados com outros autores de ideias muitas vezes contrapostas, o que tornava os corpos doutrinários de militantes e intelectuais muito eclético, desconexo e incoerente. Contudo, isso não significa que essas leituras não pudessem dizer algo sobre como funcionava a própria sociedade, sobre o que exatamente levava a essas leituras e junções incomuns, e mesmo que não criassem elas próprias novas realidades e legitimassem práticas preexistentes na conjuntura em questão.


ZAIDAN FILHO, Michel. Comunistas em céu aberto, 1922-1930. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1989.

Das três pequenas obras que Michel Zaidan Filho escreveu na década de 1980, com suas pesquisas sobre a formação política e ideológica do PCB nos anos 20, a que resume com abrangência todo o conteúdo é Comunistas em céu aberto, 1922-1930. Com o texto polido e mais alguns acréscimos, ela sintetiza seu argumento central sobre a relativa autonomia teórica e organizativa do PCB com relação à Comintern durante a década de 1920.

“Apesar da importância estratégica que representa para os PCs o seu reconhecimento oficial pela IC, há que se reconhecer que a decisão de fundar um PC e buscar sua vinculação orgânica com a Komintern foi mais um ato unidateral [sic] dos militantes socialistas brasileiros e que teve um papel decisivo nos primeiros anos de existência do partido. Na verdade, a elucidação das origens das relações orgânicas entre o PCB e a Internacional Comunista passa pela recuperação do processo constitutivo das agências regionais da IC, dos órgãos informativos e doutrinários para a América Latina, pela participação coletiva dos delegados latino-americanos nos congressos da organização internacional e, naturalmente, pelo aumento progressivo do interesse da IC pela América Latina, ou seja, quando o imperialismo americano ganha mais importância nas formulações da IC a respeito da revolução mundial. Em suma, procuramos mostrar que a efetividade orgânica e política daquele vínculo foi muito prejudicada na década de vinte pela ausência de instâncias regionais da IC (secretariados, comitês, birôs), que mediatizassem aquela relação. Esta materialização orgânica só viria [a] ocorrer em 1926, ainda assim com muita irregularidade, como admitiu o próprio Astrojildo Pereira em 1928. [...] O PCB, por sua vez, reproduzirá integralmente as teses aprovadas neste encontro [6.º Congresso da IC] sobre os países latino-americanos, nas resoluções do seu III Congresso, ocorrido em fins de 1928 e princípio de 1929. E a consolidação desta estratégia (revolução democrático-burguesa anti-imperialista) para os PCs da América Latina, se dá na I Conferência Latino-Americana dos Partidos Comunistas, realizada em Buenos Aires, em julho de 1929, sob a direção da Internacional Comunista.”
(Comunistas em céu aberto, 1922-1930, p. 134-135.)

Zaidan polemiza com os principais autores que na época escreveram sobre a teoria e prática do PCB: Edgar de Decca, Kazumi Munakata e Ítalo Tronca, bem como Paulo Sérgio Pinheiro, para os quais a estreita ligação orgânica do partido com a Comintern estaria desde o início em sua genética, sendo criado, portanto, por ação consciente dos enviados de Moscou. No caso dos três primeiros, há também uma imputação ao PCB da responsabilidade pela elaboração do discurso político dos “vencedores” de 1930, na forma da teoria da “revolução democrático-burguesa”. Neste caso, haveria uma confluência de linguagem entre os comunistas e os “tenentistas”, que desaguaram no rumo golpista e reacionário tomado pelos acontecimentos daquele ano. Zaidan responde que tanto a elaboração político-teórica do PCB quanto sua busca pela filiação à Comintern tiveram mais a ver com um esforço unilateral dos brasileiros e com uma profunda influência do meio nacional do que com uma busca a partir da Rússia e com uma assimilação precoce da teoria leninista. No início da década de 1920, os bolcheviques pouco conheciam sobre a América Latina e não a viam em sua perspectiva imediata de revolução mundial. Por outro lado, o movimento operário brasileiro recebeu com grande euforia, mas também com grande confusão, as notícias vindas da Rússia soviética sobre a ebulição em curso, não sendo efetivamente esclarecedora a mediação feita pela grande mídia. Ao findar a década de 1910, o movimento operário se encontrava em profunda repressão e na ressaca das derrotas ante o Estado e o patronato nas longas greves dos últimos anos.

Ao entrar a nova década de 1920, era agudo o debate entre os líderes operários sobre possíveis novos métodos a adotar e novas ideologias a seguir. E tanto militares, anarquistas e anarcossindicalistas quanto cooperativistas, socialistas e comunistas, segundo Zaidan, na qualidade de intelectuais e ativistas políticos, estariam imersos num caldo ideológico e analítico muito eclético e contraditório, que misturava positivismo, monismo e evolucionismo, além de interpretações duvidosas de todas essas doutrinas. Aí teriam florescido, no plano prático, os movimentos abolicionista e republicano, de marcado matiz jacobino, que por sua vez foram o berço dos primeiros partidos e correntes trabalhistas e socialistas no Brasil. Devido ao fato que aqueles movimentos ganharam impulso no seio da intelligentsia e do funcionalismo público, sobretudo os militares do Exército, o próprio surgimento das tendências de esquerda no país foi, portanto, estreitamente ligado ao oficialismo e à tutela estatal. Há de se lembrar que nas décadas de 1910 e 1920, houve um grande esforço do governo federal em cooptar os sindicatos e torná-los peça oficial, claramente controlada, do jogo político, e que vários dos líderes sindicalistas, por sua vez, não eram avessos a essa intromissão, seja por ambições pessoais, seja por maior efetividade que tal solução parecia apresentar.

Zaidan defende que a independência desfrutada pelo PCB em seus primeiros anos traduziu-se na peculiar teoria da revolução democrático-pequeno-burguesa, desenvolvida por Octavio Brandão em seu livro Agrarismo vs. Industrialismo, que serviu de bússola teórica aos comunistas brasileiros de 1925 (3.º Congresso do partido) a 1929, quando foi rejeitada pelas instâncias regionais da Comintern. Pioneiras na aplicação do marxismo à análise da realidade nacional, as elaborações de Brandão padecem de uma notável leitura superficial e confusão terminológica com relação à teoria leninista original da “revolução democrático-burguesa”, tentando acomodar o Brasil a um quadro analítico válido especificamente para a Rússia pré-revolucionária. Porém, o enraizamento na situação nacional e a imersão no supracitado caldo ideológico da Primeira República são provados pela originalidade daquela teoria, sem paralelo com qualquer outra entre as seções da Comintern, e pelo apontamento da pequena burguesia como classe revolucionária atrás da qual o proletariado deveria seguir rumo à revolução socialista posterior.

De fato, as classes mais organizadas e conscientes politicamente no Brasil eram os intelectuais e os militares, estando a burguesia, segundo Brandão, umbilicalmente ligada ao latifúndio “feudal” e ao imperialismo internacional, e por isso sem condições de engendrar um setor “nacional” apto a lutar pela independência econômica. Portanto, essa revolução deveria buscar a efetivação de direitos trabalhistas e democráticos básicos, sem mudanças muito radicais na ordem social. É evidente a influência das revoltas militares nas datas de 5 de julho de 1922 e 1924 e da atração popular que elas causaram, enquanto o PCB permaneceu à margem e não angariou lucros políticos com as comoções. Zaidan considera que essa teoria era mais “colada” à realidade brasileira, pois fazia uma análise mais realista e evitava o sectarismo de minoria que levaria ao isolamento do resto da sociedade. Se os comunistas entrassem no movimento, dirigissem-no para fins avançados e ampliassem suas frações progressistas, poderiam dar-lhe um fim exitoso e profícuo, como seria também o caso em 1930.

Contudo, a partir de 1925, por iniciativa dos próprios brasileiros e de outros latino-americanos, começaram a estruturar-se órgãos regionais por meio dos quais seria feita a ligação dos Partidos Comunistas da região com a Comintern em Moscou. Naquele ano, o Secretariado Sul-Americano (SSA/IC), sediado inicialmente em Buenos Aires, veio juntar-se ao já existente Secretariado Latino-Americano (SLA/IC), por sua vez integrando o aparelho dirigente internacional na URSS. Houve um incremento nas trocas entre o PCB e sua “matriz”, bem como na qualidade delas, começaram a ser editados periódicos e literatura teórica em espanhol [mas, ao que consta, não em português] e aumentou a assessoria do centro aos partidos locais. Em 1928, finalmente o 6.º Congresso da Comintern continha uma alusão à “descoberta” da América Latina”, embora os próprios delegados dissessem que o movimento já tinha algum desenvolvimento na região. Após o resfriamento na Europa, a derrota na China e o tensionamento das relações com o Reino Unido, e com os EUA entrando cada vez mais no centro da cena mundial, os bolcheviques passaram a ver no subcontinente um futuro foco de revoluções e decidiram pôr aí grande parte de sua atenção. Contudo, com a virada radical na política interna soviética e na diplomacia, o 10.º Pleno Ampliado do Comitê Executivo da Comintern (CEIC), em 1929, exacerbou as previsões catastrofistas traçadas no congresso anterior e apertou ainda mais o cerco sobre os Partidos Comunistas, de forma a alinhá-los às orientações de Stalin.

Assim, o PCB sofreu várias transformações forçadas, notadamente na política de “proletarização” que expeliu os intelectuais dos cargos de direção e na obrigação de abandonar a teoria da “revolução democrático-pequeno-burguesa”, fortemente atacada de todos os lados na 1.ª Conferência dos Partidos Comunistas da América do Sul e Central (Buenos Aires, 1929), em especial por Jules Humbert-Droz. Na ocasião, Brandão foi totalmente descreditado e sofreu inclusive ataques pessoais, segundo seu próprio relato. Finalmente, o Brasil entrava na órbita de controle da Comintern, por meio da imposição da teoria da “revolução agrária democrático-burguesa” e da tática de romper com qualquer setor da burguesia e da pequena burguesia, contando apenas com uma aliança operário-camponesa improvável no Brasil. O saldo no PCB foi um sectarismo radical que afastou muitos militantes, isolou-o da sociedade e tornou-o mais vulnerável às perseguições, como foi o caso da “revolução de 1930”. Zaidan conclui que a recusa, devido à nova teoria, em participar dessa insurreição militar fortemente apoiada pela população operária deu mais espaço à ala reacionária no grupo dirigente e deslocou a parte progressista, que deveria, para o autor, ser sustentada e reforçada pelos comunistas. Dessa forma, as reviravoltas poderiam ter tomado um caráter realmente transformador, e não de autêntica repressão ao movimento livre dos trabalhadores e de quase desaparecimento do PCB, como terminou sendo o caso.


OLIVEIRA, Marcos Aurelio Guedes de. Comunismo e stalinismo no Brasil. Curitiba: Prismas, 2017.

Embora o livro Comunismo e stalinismo no Brasil esteja datado de 2017, o texto não sofreu nenhuma atualização em relação à produção original da tese em 1992, o que tem consequências inestimáveis para a desatualização da obra. Primeiramente, a maioria das grandes sínteses citadas, quase sempre britânicas ou norte-americanas, são das décadas de 1960 e 1970, no máximo da de 1980, ou seja, não contam com a grande documentação da Comintern aberta a partir de 1992 e ressentem-se da pouca evolução teórica ainda obtida nos estudos do comunismo, especialmente aquela obtida pela história social e cultural. As abordagens são quase exclusivamente de história política e/ou diplomática, com bastante ignorância da história mundial mais geral e de suas interligações (os eventos geralmente têm origem monocausal, e não são resultados da interação entre os países ou de suas contradições), inclusive da história social do Brasil, pelo menos por parte de Oliveira.

Em segundo lugar, o autor ignora toda a volumosa produção que houve a respeito do PCB a partir da década de 1990, mesmo sem contar com os arquivos da Comintern (para não falar da que contou) e sem ser de abordagem demasiadamente “nacional”. Mesmo a produção sobre as relações entre o PCB e a Comintern, por intermédio ou não do SSA/IC, foi totalmente ignorada, e são dadas “respostas” a algumas “perguntas” que sequer são mais respostas ou perguntas, no estado atual das pesquisas, como a respeito do “controle” de Moscou, do “autoritarismo” do Comitê Central, da “manipulação teórica” sob Stalin etc.

Em terceiro lugar, o próprio fato de as fontes não terem sido atualizadas, independentemente de elas terem vindo de arquivos antes inacessíveis, tornou o livro muito desatualizado. A gama de idiomas contemplados é muito pobre, limitada ao português, ao inglês e ao francês, e embora haja a menção a artigos em russo isolados, não há evidência de que Oliveira os tenha consultado diretamente: especulo que ou trata-se de citações de terceiros que foram indevidamente listadas como fontes consultadas, ou foi mencionada a fonte original, mas consultada alguma tradução, ou alguém traduziu para o autor. Mesmo coletâneas de documentos selecionados (como as de Jane Degras e Aldo Agosti), em idiomas como espanhol e italiano, já estão disponíveis nas melhores bibliotecas do mundo há muitos anos, e não é compreensível porque o autor não as tenha usado para atualizar sua abordagem sobre os congressos da Comintern e sobre as relações do CEIC com as seções/partidos nacionais.

E em quarto lugar, a própria desatualização quanto às formas diversificadas de ligação entre o CEIC e os partidos (hoje mais bem compreendidas devido às novas pesquisas e às novas fontes disponíveis), seja na América do Sul ou em outros lugares, torna obsoleta grande parte de suas considerações sobre o “controle” exercido de Moscou sobre as seções nacionais. E decorrem, de sua abordagem rasteira sobre os métodos ideológicos, os controles financeiros, o aparelho burocrático e as relações exteriores (nas quais se inclui a questão da “submissão voluntária ou involuntária”), os julgamentos peremptórios e moralizantes sobre as decisões de Prestes e a natureza do comunismo e do PCB que permeiam todo o livro.

A desatualização das fontes e da literatura sobre o assunto, que pararam na época em que o autor defendeu a tese de doutorado que originou o livro (1992), é o problema que estrutura a maioria das deficiências do livro. Mas entre outras mais ou menos independentes dele estão os múltiplos problemas de redação, os julgamentos peremptórios e moralizantes sobre as ações e reflexões dos comunistas brasileiros, sobretudo de Prestes, as palavras poucos lisonjeiras (e inadequadas a um contexto acadêmico!) usadas para descrever os agentes históricos, a redução do fenômeno comunista e da estrutura burocrática da Comintern a um “stalinismo” difuso (cuja indefinição o próprio Marco Aurélio Nogueira critica em sua apresentação ao livro) e a atribuição a esse “stalinismo” de intenções malévolas, interessadas e desonestas, tornando a narrativa bastante maniqueísta.

Esse maniqueísmo, típico da produção da “guerra fria”, alça as categorias de “democracia”, “liberalismo”, “comunismo”, “marxismo” e “liberdade(s)” ao estatuto de conceitos abstratos, etéreos, supostamente subentendidos e descolados de qualquer realidade histórica. São feitas aos agentes históricos exigências completamente descabidas, como uma análise “acurada” da realidade social brasileira, a existência de “democracia partidária” dentro do PCB, a oposição pura, simples e onipresente à ditadura de Getúlio Vargas (levando a uma condenação anacrônica da política “queremista”, da União Nacional e da relativa conciliação de Prestes com Vargas) e a aplicação intelectual de um “marxismo criador” (termo que revela a desconsideração das limitações próprias de cada tempo e a aceitação acrítica de uma categoria forjada pelos próprios dissidentes de 1956-57, eles mesmos parciais por sua inserção na história).

Outros três grandes problemas, mas não exatamente estruturantes, devem ser destacados. Primeiro, há uma abstração completa da história política em relação à história social como um todo – isso quando a própria história política do Brasil e da URSS não aparecem reduzidas ou desligadas quase totalmente da história mundial mais geral –, reduzindo as políticas estatais a meras decisões e movimentos de cúpulas e, às vezes, até a intenção malévola de certas personalidades problemáticas (como citado acima), quase sempre comunistas e quase sempre personalizadas em Stalin e seu “stalinismo”.

Segundo, é falsa ou no mínimo embrulhada a dicotomia traçada pelo autor entre as abordagens “nacional” e “internacional” da história do PCB, como se fosse uma oposição entre “positivo” e “negativo”, entre “nativo” e “invasivo” ou entre “democrático” e “autoritário”. A aparente oposição entre os dois direcionamentos faz parte de uma discussão estilo “guerra fria” desencadeada durante a década de 1980 no seio do PCB, que queria então legitimar seu “enraizamento nacional” perante a decadência da URSS e a redemocratização do Brasil – e isso porque Oliveira diz várias vezes evitar ou rejeitar o “tom de guerra fria”, mas na prática acaba recaindo nos simplismos mais binários e moralistas dessa mentalidade. Qualquer tentativa de conciliar ou equilibrar as duas abordagens/direcionamentos, inclusive por olhares que o próprio autor chama de “dialéticos”, é rechaçada como parcial e encobridora da verdade, e acaba-se fazendo a opção peremptória pela abordagem “internacional”, como se o PCB fosse uma mera marionete de Moscou ou sequer pudesse pensar por conta própria ou ter sua vida individual. Não há uma brecha para que se possa pensar em possibilidades mais próximas do correto, como uma “modulação” (gradação?) – ou seja, momentos em que o nacional tinha mais peso, e momentos em que o internacional o tinha – ou uma ou mais transições graduais – ou seja, nos anos 20 o nacional tinha mais peso porque a Comintern não exercia controle sobre o PCB, nos anos 30 o internacional predominava porque o controle de Moscou foi aumentando, ou até nos anos 40 o nacional voltou à tona porque a Comintern estava em desgaste e os partidos forma deixados, por um tempo, mais à vontade pra participarem das reconstruções nacionais etc.

E terceiro, que em parte decorre da ou se relaciona com a inépcia em dosar “fatores” nacionais e internacionais, não há nenhuma tentativa, nenhuma atitude de “alteridade” que seja, de tentar entender de forma fria e objetiva qual é a natureza/essência do movimento comunista no século 20, em especial no período em que existiu a Comintern (o qual, de fato, parece ser o “núcleo duro” da história dos regimes comunistas, do impropriamente chamado “socialismo real”). Em outras palavras, os Partidos Comunistas não tinham a mínima intenção de ser partidos “democráticos”, “democratas/pró-democracia” (ao menos como entendemos a democracia no Ocidente liberal) ou nacionais, e sim unidades guerreiras nacionais do que eles consideravam ser um exército mundial da revolução proletária, continuador da Revolução de Outubro que se espraiaria pelo mundo. O que o autor chama de “submissão” era o espírito militarista/militarizante, que Lenin desejou imprimir ao movimento operário marxista, em contraste com o antigo movimento social-democrata mais descentralizado e enraizado nas instituições estatais europeias (“burguesas”). Não há como Oliveira criticar os comunistas do século 20 por não se submeterem à norma da democracia representativa se eles na verdade queriam destruí-la, quando muito superá-la. A imposição de seus pudores liberais a um grupo que se encontrava claramente em contraste com essa sociedade e, pior, a uma época cuja concepção do fazer político, mesmo no Ocidente, era bastante diferente da atual (pelo menos do início do século 21) – o que incluía também o modo como se tomavam decisões dentro de cada partido –, constitui um anacronismo e uma atitude pedante por se considerar apto a julgar outras pessoas e épocas com sua suposta aura de superioridade.


DE DECCA, Edgar Salvadori. O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1981.

Em O silêncio dos vencidos, De Decca faz uma pesquisa sobre a chamada “Revolução de 1930” cuja amplitude documental era rara na década de 1980, abrangendo a imprensa operária, os discursos das principais personagens políticas e institucionais e os registros deixados pelas organizações patronais. Ainda eram incipientes as tentativas de desmistificar o golpe de outubro como um “fato histórico” natural e como um marco de mudanças revolucionárias na estrutura sociopolítica brasileira, fixado inclusive entre as esquerdas como um divisor de águas, e de mostrar como sua lembrança não era algo dado, mas construído para a posteridade pelos diversos atores. A escolha por concentrar-se no ano de 1928 como uma data consensual em que as oposições começaram a falar em “revolução”, ainda que isso denominasse projetos políticos diferentes, ressalta a extensão no tempo da maturação culminada na crise da Primeira República, cujo desfecho 1930 ainda estava longe de representar. A variedade de camadas sociais abrangidas evita a concentração em grandes “heróis” ou “demiurgos”, traduzidos nos principais líderes, e também traz à tona a multiplicidade de discursos, conjugada com a complexidade do conceito de “revolução burguesa” ou “revolução democrático-burguesa”, popularizada na obra de Lenin e cuja inseparabilidade de cada momento histórico levou, no Brasil, a uma leitura literal e superficial, tanto pelos comunistas de então pelos marxistas das décadas de 1970.

Entre os problemas a serem apontados, destaca-se a equalização dos discursos e de seus impactos do BOC, que representava as posições do PCB, dos partidos oligárquicos (PD e PRP) e dos industriais, como se condicionantes incontroláveis, como a repressão aos operários e às eventuais perseguições a membros da classe política, não reduzissem seu peso e a possibilidade de se expressarem. De Decca pontua em certas passagens que não está ignorando a repressão policial e as leis antissociais, mas no relato elas parecem ter muito menos peso do que realmente tiveram: o BOC, afinal de contas, refletia uma tática elaborada na cúpula da Comintern, quando muito inspirada na experiência francesa, e em última instância, a não ser que tivesse eleitos não operários à sua frente, ligava-se ao destino de supressão quase total do PCB. E embora também remetendo a outras obras que tratem mais detalhadamente do aspecto policial da repressão, o livro parece focado demais nos “discursos” e em seu impacto “natural”, abstraindo boa parte do contexto de produção e da relação de forças entre as diversas classes. A própria presença quase imperceptível da conjuntura internacional, tanto nas relações do Brasil com as potências capitalistas quanto na reorganização a que forçou o surgimento e consolidação da URSS, dá a entender que a disputa de discursos formava um universo em si mesmo.

Existe também uma impressão de que esses discursos ou grupos “dialogavam” entre si, como se subentende na alusão onipresente a Luiz Carlos Prestes (o qual, aliás, seria depois rejeitado pelo PCB por ocasião da virada radical stalinizante), e que nesse suposto diálogo se viam como iguais ou mesmo dignos de interlocução. Como, por exemplo, os setores agrários e industriais veriam um representante operário como seu “igual” em plena década de 1920? Ou mesmo o BOC como um interlocutor em pé de igualdade, sobretudo quando se sabe que na cidade do Rio de Janeiro (De Decca assume ter se limitado a São Paulo) os vereadores Octávio Brandão e Minervino de Oliveira sequer podiam atuar em paz e tiveram sua imunidade parlamentar violada?

Igualmente não se entende por que o BOC é chamado de “o” partido da classe operária: vontade de simplificação, única representação legal ou entidade ligada à política comunista? E outros sindicatos, grupos operários e correntes ideológicas, mesmo que não influentes no debate? Deve-se ver se, na verdade, as elites construíam seus discursos pensando nos grupos operários ou pró-operários como seus interlocutores, ou se simplesmente os ignoravam como interlocutores e os queriam ver suprimidos de qualquer voz ou participação política. Enfim, De Decca sugere que o PCB, por intermédio do BOC, teria sido um dos responsáveis por introduzir o temário da “revolução”, embora seja bastante duvidoso que as elites dissidentes não tivessem buscado esse vocabulário em outras fontes, como a Revolução Francesa ou mesmo as recentes revoluções na Rússia (vencedora) e na Europa (derrotadas).

Verifica-se a construção do mito “de revolução de 30” pela sobreposição de discursos, mas não se fica sabendo de onde veio o vocabulário revolucionário que, na prática, talvez fosse compartilhado pela maioria dos setores da época, a partir de fontes muito diversas. Afinal, até a extrema-direita de então podia se chamar “revolucionária” ou “socialista”.


Artigos presentes em:
MORAES, João Quartim de; REIS FILHO, Daniel Aarão (Orgs.). História do marxismo no Brasil. 2. ed. rev. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. (V. 1. “O impacto das revoluções”.)

MORAES FILHO, Evaristo de. A proto-história do marxismo no Brasil (p. 13-58) – Existe um grande lapso temporal entre o surgimento e o impacto prolongado da obra de Karl Marx [o autor minora o papel de Friedrich Engels] na Europa, em especial Alemanha, Reino Unido e França (em contraste com Portugal, Espanha e Itália mais “anarquistas” e “anarcossindicalistas”), e suas primeiras citações no Brasil da década de 1870. O autor atribui esse fato ao caráter que o país tomou de apêndice agroexportador e de produtor de matérias-primas da economia capitalista global, por um lado deixando-o mais infenso à absorção acrítica de ideias da “metrópole” europeia, e por outro lado entravando um desenvolvimento industrial que pudesse gerar sua classe operária e a consequente adequação das doutrinas socialistas europeias. Além disso, as primeiras citações, em um meio intelectual dominado pelo positivismo de Auguste Comte e por outros autores vinculados mais a um socialismo filantrópico, vieram por fontes indiretas, como Benoit Malon e Enrico Ferri, muito mais lidos no Brasil.

Como agravante, as primeiras citações de Marx eram feitas num contexto extremamente crítico e ferozmente combativo contra ideologias “funestas”, notadamente o “câncer” comunista, e não raro distorcidas quanto aos conceitos originalmente expressos, algo corrente mesmo entre os pensadores progressistas. E ainda pior, raramente os leitores provinham da classe operárias, sendo antes intelectuais pequeno-burgueses, catedráticos e magistrados, ora buscando refutar sua atuação subversiva e defender as instituições tradicionais, ora encaixando-o em um contexto filantrópico e meramente analítico ou contemplativo. Mesmo entre os socialistas brasileiros, qualquer ação “destrutiva” ou revolucionária era abstraída de toda análise econômica, história e filosófica, seu nome figurava ao lado de pensadores cujas teorias eram muito divergentes das suas e as leituras e elaborações feitas transformavam-se em um “caldeirão” de citações desconexas, descontextualizadas e totalmente ecléticas quanto aos argumentos e pressupostos defendidos.

Por muito tempo, as ideias de Marx chegaram ao Brasil por meio de citações em outros autores europeus ou de traduções em outras línguas europeias, sendo a primeira citação diretamente do original em alemão feita por Tobias Barreto apenas perto do fim do século XIX. Tanto que a primeira tradução brasileira de uma obra de Marx, já dentro da perspectiva leninista e soviética, foi feita em 1923 por Octavio Brandão, tratando-se do Manifesto Comunista, ainda assim retraduzido a partir de uma edição francesa. Durante o início do século 20, Marx também não foi predominante no movimento operário e entre os intelectuais progressistas no Brasil, no primeiro caso predominando o anarquismo e o anarcossindicalismo radicais (eles mesmos padecendo das mesmas leituras ecléticas e contraditórias), e no segundo ainda predominando autores europeus reformistas ou filantropos, assim como a Doutrina Social da Igreja. Apenas depois de 1930 as obras de Marx começaram realmente a ser difundidas e traduzidas no Brasil, e somente a partir da década de 1970 surgiram grupos, seminários e cursos acadêmicos dedicados ao estudo aprofundado desses escritos. Destaque para Caio Prado Jr., que fez o que realmente pode ser chamado de primeira análise marxista da estrutura socioeconômica brasileira, em contraste com o panfleto Agrarismo vs. industrialismo de Octavio Brandão, que na opinião de Moraes seria virulento, primário e desconexo.

DEL ROIO, Marcos. O impacto da Revolução Russa e da Internacional Comunista no Brasil (p. 59-121) – Os influxos da obra de Karl Marx vieram de forma muito indireta no Brasil, por meio de leituras superficiais em traduções estrangeiras ou de citações esparsas em outros autores socialistas mais lidos do que Marx e Engels, muitos deles com ideias bastante distintas das dele. Uma das particularidades brasileiras é que não havia um partido social-democrata ou socialista reformista forte ou predominante, o que não fez os grupos comunistas ou o futuro Partido Comunista surgir separando-se daquele hipotético partido. Além disso, muitos militantes convertidos ao comunismo vieram dos meios anarquistas e anarcossindicalistas sem necessariamente ter uma experiência ou formação sólida anterior no marxismo, assim parte de seus métodos e reflexões passou à sua etapa como comunistas.

Por isso, quando as lutas da Comintern contra a social-democracia na Europa eram transplantadas para o Brasil, o alvo sempre eram os “desvios de direita”, o reformismo ou os “resquícios anarquistas”. Mesmo assim, desde o início houve um esforço por parte do PCB recém-fundado por assimilar a teoria emanada da Comintern, mesmo que por meio dos documentos políticos e programáticos oficiais, e por impulsionar campanhas de apoio à Rússia soviética que estava passando fome. Desde o fim do século 19, apesar da recepção e leitura peculiares, as obras de autores socialistas e reformadores sempre tiveram algum trânsito pelo Brasil, influenciando os intelectuais radicais egressos do abolicionismo e do republicanismo e, por vezes, operários. Leituras de autores em voga na época, como Auguste Comte, Benoit Malon, Charles Darwin, Herbert Spencer e Enrico Ferri, encontravam-se emparelhadas com Marx e Engels, em um ambiente impregnado de positivismo e evolucionismo, que determinava a leitura dos dois alemães.

Demonstram as dificuldades intelectuais da transição do anarquismo para o comunismo os próprios Astrojildo Pereira, que inicialmente ainda lia o processo político brasileiro dentro de um quadro analítico anarquista, e Octavio Brandão, que fez um emprego muito particular da dialética marxista e embaralhou vários conceitos empregados por Lenin. Apesar disso, a introdução do marxismo e do leninismo deu-se de forma progressiva no Brasil, o PCB seguiu seu curso evolutivo rumo a uma estreita (e quase sempre submissa) ligação com Moscou, e as dilacerações no seio da Comintern e as lutas democráticas e antifascistas tiveram reflexos no país. Em todo caso, a importância do PCB no movimento comunista mundial sempre permaneceu a reboque da posição que o Brasil e a América Latina ocupavam nos planos de revolução mundial da Comintern/URSS.

MORAES, João Quartim de. A influência do leninismo de Stálin no comunismo brasileiro (p. 123-181) – O autor começa enfatizando que é muito difícil separar a atuação política de Stalin, que ele reconhece como convergente rumo a uma ditadura terrorista e policial, de sua contribuição própria à teoria marxista, que independentemente de sua qualidade interna, desfrutava de alta operacionalidade e exerceu uma atração e influência que ultrapassaram a morte do líder. Somente a repressão física e política não podem explicar como inúmeras categorias do pensamento staliniano permaneceram na própria análise dos líderes soviéticos e de outros militantes marxistas ao redor do mundo, especialmente no mundo colonial e subdesenvolvido. Com uma grande influência do contexto imediatamente posterior à “guerra fria” em que Moraes escreve, ele ressalta que estava sendo muito fácil descartar e estigmatizar toda a teoria de Stalin apenas com base na violência que ele promoveu na antiga URSS, enquanto é impossível entender o movimento comunista sem analisar o impacto que ela causou. As elaborações teóricas de Stalin são inseparáveis do contexto político, social e histórico em que ele viveu, não se podendo esperar um alcance ou uma equiparação com aquelas desenvolvidas por Lenin ou Trotsky, mais cosmopolitas, mas nem por isso devendo ser totalmente descartadas para uma análise mais refinada. Tão importante é essa compreensão na medida em que o pensamento staliniano influenciou muito cedo o PCB, primeiramente a partir dos documentos políticos emanados da Comintern e do PC russo, posteriormente pela intervenção direta de Stalin nos Partidos Comunistas e por seu predomínio sobre toda a política soviética.

Moraes lembra que não era necessária uma leitura direta dos escritos de Stalin para se ter um contato com seu esquema de pensamento, bastando os referidos textos programáticos, por isso um texto como Agrarismo vs. Industrialismo de Octavio Brandão, assim como alguns escritos de Astrojildo Pereira, já continham em germe a teorização que mais tarde se imporia em todo o movimento comunista. Dados a ausência de um movimento social-democrata forte anterior no Brasil e o contato raso que os intelectuais até 1922 tinham com Marx e Engels, sobretudo por vias indiretas (Benoit Malon, Enrico Ferri etc.), o marxismo na verdade chegou ao país junto com o comunismo (leninismo, muitas vezes a interpretação de Stalin), e somente com a consolidação do movimento comunista nacional começou-se a publicar Marx e Engels com mais frequência e consistência.

Não há nenhuma contradição em se pensar que ser marxista, na primeira metade do século 20 no Brasil, era na verdade ser comunista, e ser comunista era ser stalinista, todas essas identidades se sobrepondo, portanto, até começarem a separar-se na década de 1950. Tanto que o pensamento de Stalin sobreviveu não somente à morte do líder como também ao distanciamento que o PCB começou a tomar de sua herança a partir de 1956, como se percebe no resgate que Mao Zedong reivindicou do “marxismo-leninismo” ortodoxo e no surgimento de vários grupos maoístas no Brasil, em especial durante a luta armada contra a ditadura militar. O próprio PC do B continuou longamente reivindicando Stalin sem disfarçar, e seus esquemas de raciocínio permaneceram mesmo entre os grupos que rejeitaram a herança política do líder, como é o caso da liderança soviética e também do PCB. Portanto, a grande pergunta a se responder é por que o pensamento de Stalin, apesar de sua estigmatização como simplista e precário e da rejeição do legado político e da violência policial deixadas por ele como ditador, permaneceu como referência, por vezes implícita, mesmo entre as correntes que deixaram de reivindicar seu nome entre os epígonos do comunismo leninista.


BATALHA, Claudio H. M. A difusão do marxismo e os socialistas brasileiros na virada do século XIX. In: MORAES, João Quartim de (Org.). História do marxismo no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007, p. 9-41. (V. 2. “Os influxos teóricos”.)

A tese principal de Batalha é a de que não se pode exatamente dizer que não havia marxistas nem leitores de Marx no Brasil nas viradas dos séculos 19 e 20, pois isso implicaria admitir que haveria uma única leitura correta de Marx e Engels, bem como avaliar todo e qualquer leitor, independentemente de seu contexto, por meio de um único “metro” atemporal. O autor admite que os primeiros leitores de Marx no Brasil faziam sua própria leitura, dentro de um contexto determinado, impelidos por contingências políticas circunscritas e enquadrados pelas próprias limitações (escolaridade, conhecimento de idiomas, leituras prévias etc.). Assim como outros especialistas, Batalha destaca a chegada de Marx ao Brasil em citações de Benoit Malon e Enrico Ferri, que ou eram mais traduzidos, ou eram mais lidos em suas línguas originais (como as traduções de Ferri ao francês, idioma culto da época), ou tinham impacto em comunidade de imigrantes, como a italiana, sendo que Malon também teve uma prolífica atuação na Itália e foi aí muito traduzido. Entre os imigrantes alemães, por exemplo, muitos autores socialistas alemães eram lidos. Eram autores que conviviam em um eclético caldo de correntes e pensadores, quase sempre confundidos no positivismo social predominante do período.

Apesar da ausência de um partido social-democrata no Brasil da belle époque, autores socialistas europeus eram constantemente lidos pelos militantes radicais ou de esquerda no Brasil, muitos deles sem um modelo nacional consistente e importando o que mais estava em voga na Europa, não raro com relações com grandes movimentos da época, como a Comuna de Paris de 1871. Uma grande consequência dessas leituras frequentes, mesmo entre alguns operários, era a discussão sobre a necessidade de se criar ou não um partido operário, para a defesa de interesses de classe, e em caso positivo, se ele devia restringir-se à arena eleitoral ou à pressão das autoridades por concessões. Era muito comum que no Brasil da virada dos séculos 19 e 20 surgissem efêmeros “Partidos Socialistas” ou “Partidos Operários”, que não raro se desfaziam depois das disputas eleitorais para as quais eram criados ou diante de uma sociedade bastante conservadora.

Curiosamente, embora os socialistas brasileiros vissem no SPD alemão um exemplo de partido e de organização, nunca lograram os esforços para que algo parecido fosse criado no país e muitas vezes mantinham influências do anarquismo quanto ao modelo organizativo e ao projeto de sociedade futura. Os pensadores e militantes socialistas e progressistas até a década de 1910, mesmo atuando dentro dos marcos da lei em um trabalho muitas vezes meramente teórico, eram estigmatizados e perseguidos pelo Estado da época, considerados como subversivos e desagregadores, muitos deles, sobretudo quando operários industriais, tendo dificuldades para arranjar um novo emprego quando demitidos. Contudo, sua atuação daria a base para a futura elaboração política e partidária de novos grupos marxistas, notadamente o PCB, que começarão a ler diretamente Marx e Engels, privilegiar o partido como forma de pressão e organização e adequar-se à nova realidade que sucedeu aos velhos militantes abolicionistas e republicanos frustrados com o regime que ajudaram a construir.