Se tudo continuar como está, os eventos de 24 de julho na Rússia vão ser eternizados na imagem acima, que já virou um meme: os mercenários do Grupo Wagner bloqueando a entrada de um circo na cidade de Rostov-na-Donú. Desta vez, o palhaço não foi Zelensky, mas Ievgeni Prigozhin, chefe da milícia paramilitar, que na noite de ontem (madrugada de hoje na Rússia) declarou uma “marcha da justiça” contra Sergei Shoigú, ministro da Defesa, e o general Valeri Gerasimov, comandante das Forças Armadas. Durante todo o sábado, ele dirigiu suas tropas do leste da Ucrânia rumo a Moscou e tomou o controle de cidades no caminho, a mais importante delas sendo Rostov-na-Donu, muito estratégica pro envio do exército que está agredindo a Ucrânia. Apesar do nome dado por Prigozhin, o governo russo considerou o movimento como um “motim” e uma “facada nas costas”; as autoridades ucranianas acharam que estava começando uma “guerra civil”; e observadores estrangeiros falavam em “golpe de Estado”, embora o alvo não fosse o Kremlin, mas a cúpula militar. Lembremos que o mafioso nunca se dirigiu diretamente a Putin com ofensas, ao contrário do que sempre fez com meio mundo.
Comecei o texto perto das 16h no horário de Brasília, e no momento parece que o ditador de Belarus, Aleksandr Lukashenko (diretamente ameaçado por uma ocasional ruína de Putin), conseguiu negociar com Prigozhin o fim da marcha e, inclusive, a retirada das milícias de Rostov-na-Donu. O bilionário afirmou querer evitar um “banho de sangue russo”, embora todas essas circunstâncias ainda não estejam claras nem pro melhor dos especialistas. O que todos já sabem é que há de fato uma luta por poder e influência entre tropas regulares e irregulares, que Prigozhin age às margens da lei ou mesmo fora dela, dependendo da boa-vontade de Putin (que é quem de fato manda nos oligarcas), e que o moral de todos os combatentes está péssimo, pois a Rússia nunca esteve preparada pra uma guerra dessa amplitude, qualquer que fossem, por outro lado, as forças da Ucrânia. É mais um capítulo trágico de um país, na verdade, que já foi tragicamente levado à beira do abismo pelo despotismo e pela corrupção.
Ontem, antes ainda do “negócio sucumbir”, decidi publicar aqui a tradução de algumas declarações de Prigozhin, que já tinham jogado gasolina no fogo, pois pareciam ter cruzado limites ainda mais perigosos do que aqueles já rompidos pelo mafioso. Mas ninguém achava que a escalada verbal ia se traduzir numa escalada militar, o que torna esses documentos ainda mais relevantes. O primeiro é a tradução (em parte pelo Google, em parte com revisão minha) deste artigo de um jornal israelense, narrando o primeiro vídeo em que Prigozhin faz as mais cortantes críticas dele vindas até agora sobre a “operação militar especial”. E o segundo é a tradução, feita pelo canal Hoje no Mundo Militar, mas que você pode comparar com texto e áudio originais lançados pela TV Rain, do chamado à tal “marcha pela justiça”, que abriu os eventos disruptivos de hoje.
O espetáculo acabou, mas o circo ainda não. Zelensky (rs) afirmou quase às 16h de Brasília que isso só mostra como Putin não controla nem as instalações militares dentro do próprio país, e especialistas dizem que mais consequências podem estar por vir. Ao que parece, o Kremlin “envergou, mas não quebrou” ainda...
Prigozhin fez uma declaração sobre a “SVO” (operação militar especial): Shoigu, o “vovô trêmulo”, matou a parte mais capacitada do exército russo
Na sexta-feira, 23 de junho, o canal do Telegram do grupo Konkord publicou a “primeira parte de uma entrevista” com o proprietário do grupo Wagner, Ievgeni Prigozhin, na qual ele criticou duramente a liderança político-militar da Federação Russa.
A rigor, trata-se de uma gravação do monólogo de Prigozhin, e não de uma entrevista com ele.
Prigozhin declara à câmera que desde 2014 o Donbás foi saqueado por gente da administração presidencial da Federação Russa, do FSB e por oligarcas (menciona o empresário Sergei Kurchenko).
O proprietário do Wagner afirma que as ações das Forças Armadas da Ucrânia e das formações de voluntários ucranianos no leste da Ucrânia não foram o motivo para o início de uma “operação militar especial”.
Ievgeni Prigozhin fez uma avaliação extremamente negativa da eficácia de combate do Exército Russo, especialmente em termos de treinamento de conscritos. “Tal exército não pode conduzir operações militares em larga escala”, disse ele, observando que os militares russos também não adquiriram nenhuma experiência de combate na Síria.
Nesse discurso, Prigozhin diz que a “operação militar especial” contra a Ucrânia foi “mal planejada”. “Nos primeiros dias da guerra, Shoigu matou milhares de soldados russos, matou a parte mais capacitada do exército”, diz Prigozhin. Além disso, ele conclama a julgarem o ministro da Defesa da Federação Russa e chama Sergei Shoigu de “doente mental” e “vovô trêmulo”.
Voltando à conversa sobre os reais objetivos da “SVO”, Prigozhin diz: “A guerra era necessária para que um bando de criaturas triunfasse e fosse promovido... para que Shoigu fosse promovido a marechal e recebesse uma segunda medalha de Herói da Rússia.” E segue: “A guerra era necessária para os oligarcas, o clã que realmente controla a Rússia.” Ele também afirma que o objetivo da guerra foi a nomeação de Viktor Medvedchuk como presidente da Ucrânia, chamando-o de “carniça”.
Falando sobre a remoção de tudo de valor dos territórios ocupados da Ucrânia, Prigozhin declara: “A guerra santa se transformou em extorsão, em criação de ratos.”
Na gravação, Prigozhin diz aberta e repetidamente que a liderança do Ministério da Defesa da Rússia está enganando o presidente russo, Vladimir Putin, contando-lhe “fábulas” sobre os sucessos do Exército Russo na Ucrânia.
Simpatizantes em Rostov e um menino com boné da marca poctob, rs
Prigozhin, dono do grupo Wagner de mercenários, declarou guerra ao Ministério da Defesa russo! Transcrição completa da mensagem de áudio que divulgou há poucos minutos [começo da noite de sexta-feira no Brasil]:
O Conselho de Comandantes do Grupo Wagner tomou uma decisão: o mal trazido pela liderança militar do país deve ser interrompido.
Eles negligenciam a vida dos soldados. Esqueceram a palavra “justiça” e vamos trazê-la de volta.
Aqueles que destruíram hoje nossos homens, que destruíram dezenas, dezenas de milhares de vidas de soldados russos, serão punidos.
Peço: não resistam! Todos que tentarem resistir, consideraremos um perigo e os destruiremos imediatamente, incluindo quaisquer postos de controle em nosso caminho. E qualquer aviação que acima de nossas cabeças.
Peço a todos que mantenham a calma, não cedam às provocações e permaneçam em suas casas. O ideal é que aqueles que estão no nosso caminho não saiam.
Depois de terminarmos o que começamos, voltaremos à linha de frente para proteger nossa pátria.
Autoridade presidencial, governo, Ministério do Interior, Rosgvardia [Guarda Nacional da Rússia, força paramilitar subordinada ao próprio presidente] e outros departamentos continuarão operando como antes.
Vamos lidar com aqueles que destroem soldados russos. E voltaremos à linha de frente.
A justiça no Exército será restaurada. E depois disso, justiça para toda a Rússia!
“Tchau, querides! Alex me espera, rs.”
Finalmente, no meio da tarde brasileira, Prigozhin mandou este último áudio transcrito e traduzido em inglês por uma jornalista. Às 17h de Brasília, a mídia estrangeira anunciava que ele tinha partido pra Belarus e que não se sabe quanto tempo vai ficar lá:
Eles queriam dissolver Wagner. Partimos no dia 23 de junho para a “Marcha da Justiça”. Em um dia, marchamos a pouco menos de 200 km de Moscou. Durante esse tempo, não derramamos uma única gota de sangue de nossos combatentes. Agora é o momento em que sangue pode ser derramado. Percebendo toda a responsabilidade se houver derramamento de sangue russo, estamos retornando nossas colunas e partindo na direção oposta, para nossos acampamentos, de acordo com o plano.
“Tudo está indo de acordo com o plano” é uma frase que já virou meme na Rússia, de tanto ser repetida por Putin até nas piores horas. E parece que o tal plano deu certo: pelo que já sabemos no começo de nossa noite, todos os processos contra Prigozhin e seus comandados foram suspensos em troca desse “exílio” arranjado; o povo de Rostov saudou a retirada do grupo Wagner com palmas e cantos, mostrando que talvez fossem mais populares que o próprio Exército Russo (Telegram versus TV tradicional); e Putin saiu com uma derrota humilhante, pois escancarou a fraqueza do Estado e vai o forçar a rever suas relações com os militares e a oligarquia. Não com a Ucrânia, claro...
Novamente ficam piadas como esta: “Dia 485 de minha guerra de 3 dias. A Rússia está invadindo a Rússia pra libertar a Rússia daqueles que invadiram a Rússia pra libertar a Rússia daqueles que invadiram a Rússia. Ainda sou o mestre dos estrategistas...”