quinta-feira, 19 de abril de 2018

‘Enver Hoxha e mprehi shpatën’ (PPSh)


Link curto para esta postagem: fishuk.cc/tungjatjeta

Esta breve canção tem um papel especial na minha vida, embora eu nunca simpatizasse com sua ideologia. No primeiro ano da graduação em História, continuei minha pesquisa na internet por curiosidade pessoal sobre os antigos regimes comunistas europeus. Em 2006, a ditadura implantada por Enver Hoxha na Albânia em 1943 estava começando a despertar meu interesse, não só porque eu nada sabia dela, mas também porque a suntuosidade das manifestações culturais contrastava com a austeridade política e econômica. E nos sites especializados, esta foi a primeira canção que me chamou a atenção, por sua simplicidade e tipicidade balcânica, e deduzi que era um louvor ao poder, embora eu não entendesse a língua albanesa.

A música se chama oficialmente Enver Hoxha e mprehi shpatën (Enver Hoxha afiou sua espada), porém é mais conhecida na internet por algumas de suas palavras, Enver Hoxha Tungjatjeta! (Vida longa a Enver Hoxha!). A palavra tungjatjeta (lê-se “tunndjatiêta”) parece complicada, mas quer dizer um simples “Olá!” ou “Salve!” em albanês, ou literalmente “Vida longa a você”. Em russo é traduzida por da zdravstvuiet (viva), e em inglês, long live, então poderíamos traduzir a frase como “Vida longa a Enver Hoxha!”. Mesmo assim, fiz uma pequena adaptação pra inseri-la bem na letra em português, e além disso há também a variante Tunjatjeta, sem o G, que aparentemente se canta no áudio. Neste caso, deve ser variação dialetal ou eufônica.

O sobrenome “Hoxha” se lê “rôdja”, e esse dígrafo XH também existe no nome de batismo da madre Teresa de Calcutá, cuja origem é albanesa. O governo do líder antifascista durou de 1943, quando os comunistas se apossaram totalmente da Albânia e extinguiram a monarquia, até 1985, quando Enver finalmente faleceu. As primeiras eleições livres só ocorreriam em 1992, após o mando do sucessor de Hoxha, Ramiz Alia, e houve nos últimos anos do regime grandes massas de albaneses migrando pra Itália, atravessando o Adriático como loucos. O comunismo da Albânia era considerado o mais duro da Europa, pau a pau com o romeno Ceaușescu (“tchauchêscu”) e conhecido pelas torturas nos campos de prisioneiros, sobretudo de religiosos. O pós-guerra representou a primeira oportunidade dos albaneses terem um Estado digno do nome, e assim o PPSh (partido comunista) também elaborou algo que pudesse ser denominado “cultura/folclore albanês”, reproduzido à exaustão pelo governo. O regime era totalmente espartano, com a Albânia vivendo apenas do básico e necessário, mas certamente, mesmo sob uma ditadura, era a melhor coisa a que tinha até então chegado um pobríssimo povo nômade de pastores montanheses.

Como não sei albanês, e como o material de pesquisa na internet ainda é precário (idioma muito pouco falado no mundo), me arrisquei a traduzir diretamente de duas versões em inglês, cotejando-as, mas por vezes também buscando algumas palavras no Wiktionary. Uma delas pode ser lida nesta página, e a outra se lê nas legendas que podem ser ativadas em inglês ou albanês, nesta montagem de um canal com muito mais material interessante sobre o comunismo europeu. A língua albanesa é muito bonita e fácil de aprender a pronunciar, constituindo um ramo isolado na grande família indo-europeia, assim como o grego e o armênio. Com algum esforço, podemos reconhecer palavras com raízes remotas iguais às do latim ou português: shpatë (espada), shkrep ou shkarp (penhascos), que lembra “escarpa” ou “escarpado”, e flamur (flâmula = bandeira).

Carreguei no meu antigo canal do YouTube três versões legendadas dessa canção. A primeira é aquela mesma montagem a que me referi acima e que creio ter sido feita pelo administrador do canal, inclusive melhorando a qualidade do áudio original. Pelo que consta, a gravação foi feita pelo cantor albanês Arif Vladi, que continua na ativa, mas nos tempos comunistas fazia (obrigação ou pragmatismo?) propaganda do governo. Neste vídeo podemos ver a ocasião em que é gravado esse áudio, num show bem simples e de imagem pouco nítida. A segunda é uma montagem minha com legenda bilíngue, a bandeira da Albânia comunista e o áudio que eu realmente escutava em 2006: assistam duas vezes, lendo uma legenda de cada vez! Eu baixei o áudio deste famoso site russo, tendo apenas tirado um ruidinho que toca no começo, mas não há dados sobre cantor, ano, compositor etc. Pode-se ler nesta página a letra original toda, com ortografia e gramática certas.

O terceiro vídeo é uma versão dançada e apresentada da música, que decidi legendar porque achei muito bonita a execução dos dançarinos, impressão que tenho com a cultura da Albânia em geral. Legendei apenas a parte cantada, que eu já tinha traduzido, e não o que o narrador do vídeo fala na segunda metade, por eu desconhecer a língua. Nesta página está o vídeo sem legendas, e eu não quis recortar o enquadramento, pois isso tiraria muito material visual importante. Omite-se a segunda estrofe. Como a cultura independente não era muito desenvolvida, sendo toda controlada pelo Estado, Enver Hoxha Tungjatjeta! devia ser como um mantra chiclete que grudava e perseguia a cabeça das pessoas. Seguem minhas três legendagens, a letra em albanês da canção e a tradução em português:





Minha impressão pessoal é que a dança parece uma coisa orwelliana, o que a Europa teve de mais próximo da Coreia do Norte dos Kim. Pra muitos lá que não gostavam do regime, devia parecer um inferno, ter de sentar no salão escuro, com aquele retratão do “Grande Irmão” vendo todos e o locutor começando a música como uma trilha de filme de terror. Seu tom autoritário e intimidador lembra a todos quem é que manda! A cor vermelha onipresente e as batidas compassadas dos pés agravavam a impressão, ainda mais quando tinham o andamento acelerado, perto do fim. Com os dançarinos de traje típico em cima e os de roupa sport embaixo, dá também a figura de várias camadas rumo ao abismo. Ao final, a velha saudação ritual e repetitiva a Enver Hoxha, mecânica e insincera, revelando um culto à personalidade muito mais bisonho do que o feito com o inimigo Marechal Tito. Com o povo sendo inculcado de que a Albânia podia entrar numa guerra a qualquer momento, isolando-se totalmente depois de romper primeiro com a URSS e depois com a China, acredito que o pós-comunismo tenha sido o combate a uma psicose de guerra.

João Amazonas teria múltiplos orgasmos internos e externos se visse este vídeo, hehehe:


1. Enver Hoxha e mprehi shpatën
Edhe’j her o për situatën
Kjo asht shpata qe u rrin tek koka
Gjith armiqve o që ka bota

Refren:
Enver Hoxha heu Tunjatjeta!
Sa kto male e sa kto shkrepa
Zanin Shqipes o lart ia ngrite
Gjithë kët popull në drit e qite

2. Ylli i kuq o shëndrit mbi maja
Bjen daullja edhe zyraja
Porsi nuse asht ba Shipnia
Flamurtare i prin Partia

(Refren 2x)

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1. Enver Hoxha afiou sua espada
Mais uma vez para o combate
E ela pende sobre as cabeças
Dos inimigos do mundo todo

Refrão:
Enver Hoxha, viva tanto qual
Essas montanhas e penhascos
Você levou alto a voz da águia
E trouxe o país todo às luzes

2. A estrela rubra luz nos cumes
Soam tambores, gaitas de fole
A Albânia é levada como noiva
Pelo Partido com sua bandeira

(Refrão 2x)