domingo, 20 de agosto de 2017

“La Carmagnole” (revolução francesa)


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Entre as três músicas revolucionárias francesas que E. P. Thompson cita em sua Formação da classe operária inglesa e que eram também cantadas pelos rebeldes ingleses, só faltava eu ter legendado esta: La Carmagnole (A Carmanhola). Ela foi recitada pela primeira vez, pelo que se diz, em 10 de agosto de 1792, quando o Palácio das Tulherias, residência do rei Luís 16, foi invadido e a família real foi presa, marcando o início do fim da monarquia constitucional. As outras canções que eu mencionei eram A Marselhesa e Ça ira ! A Carmanhola é um ritmo popular de origem italiana, e as letras aqui apresentadas não têm um autor conhecido.

No sentido comum, “carmanhola” era uma espécie de contradança acompanhada de canto e executada pelos adeptos da Revolução Francesa, sobretudo em torno das guilhotinas e das Árvores da Liberdade plantadas em todo o território nacional. Mas a festa era feita também em outras ocasiões combativas, e por vezes os opositores capturados eram obrigados a dançar e cantar uma carmanhola, antes de serem presos ou até executados. Ao que parece, o nome vem do vilarejo de Carmagnola, atualmente no Piemonte italiano, localizada num dos vales que fica entre Gênova e Turim e de onde uma corrente migratória se transferiu pra Marselha no fim do século 16, levando seus costumes, roupas e música. Não por acaso, a melodia deve lembrar muito aos brasileiros a tarantella.

Alguns fatos do fim do século 18 ainda carecem de explicação: o uso corrente, pelos sans-culottes, dos trajes dos cultivadores de cânhamo emigrados do vilarejo de Carmagnola; a vinda, ou não, do ritmo de dança a partir de Marselha; e a suposta ligação da antiga dança italiana da carmagnola, hoje quase extinta, e as carmagnoles francesas de 1792. Ocorria, porém, que por volta de 1780, o termo “carmagnole” designava em Paris as roupas curtas adotadas pelo povo e as pessoas contratadas pra serviços braçais de duração limitada. A primeira carmanhola revolucionária, que se escuta no vídeo, refere-se à transferência da família real francesa, em 10 de agosto de 1792, pra Torre do Templo, antigo castelo templário que agora servia de prisão. A monarquia seria abolida em 21 de setembro, Luís 16 seria executado em 1793 e a família real ficaria na Torre até 1795.

Também não se sabe ao certo se A Carmanhola aqui legendada foi composta de uma só vez por alguém, ou se teve as estrofes juntadas gradualmente por várias mãos. Desde 1792, na onda revolucionária, o ritmo ficou extremamente popular na França, tornando-se parte da identidade sans-culotte. A partir daí, durante o século 19 e mesmo durante o 20, novas “carmanholas” eram compostas, cantadas e dançadas pelo povo no mesmo ritmo, conforme o evento e situação social da época. Mesmo tendo Napoleão, como Primeiro Cônsul, proibido La Carmagnole e Ça ira !, ambas continuaram no seio popular. Antes, as tropas revolucionárias usavam carmanholas como marchas militares em suas expedições, e mesmo ao entrarem na Itália, no fim do século 18, fizeram o Piemonte ouvir o ritmo novamente, e lá mesmo chegaram até a ser feitas versões antijacobinas. Mas com o tempo, também surgiram carmanholas italianas com temas rebeldes.

A letra completa tem várias expressões idiomáticas que traduzi pelo significado, além dos apelidos “Sr. Veto” (Luís 16) e “Sra. Veto” (Maria Antonieta), entendendo-se véto figuradamente em francês, como uma imposição ou atitude autoritária. Há ainda referência à Guarda Suíça, unidades militares mercenárias alugadas por diversos soberanos entre os séculos 15 e 19 pra proteção pessoal e residencial (a única existente hoje é a do Vaticano). Nem todas as gravações disponíveis no YouTube abrangem o maior número possível de estrofes, sendo que nem mesmo há um texto que se possa considerar “oficial”. Dos dois melhores áudios que achei, aproveitei um mais antigo e a ele adicionei um mais novo, do qual retirei as estrofes já cantadas no primeiro. A divisão entre os dois está bem indicada no vídeo. E, como brinde, pus ainda no final uma gravação russa de 1970, feita pelo Coral dos Pioneiros da URSS!

Eu mesmo traduzi, legendei e fiz a montagem, tendo tirado o primeiro áudio de um vídeo cujo canal, infelizmente, foi apagado, e o segundo, com as estrofes não cantadas naquele, deste vídeo, que reproduz a gravação de Marc Ogeret no disco Chante la Révolution (1988). A letra completa da Carmagnole, que não está na mesma ordem do vídeo, está nesta página. A legenda é bilíngue, ou seja, em cima há a versão em francês ou russo (esta com transliteração segundo meu sistema próprio), e embaixo a tradução em português. A letra e o áudio da versão russa estão nesta página, e pode-se também ver um exemplo da carmanhola como dança típica neste vídeo. Seguem abaixo a legendagem, que era do meu antigo canal do YouTube, como sempre, as letras originais e as traduções em português:


1. Madam’ Véto avait promis
Madam’ Véto avait promis
De faire égorger tout Paris
De faire égorger tout Paris
Mais son [le] coup a manqué
Grâce à nos canonniers

Refrain:
Dansons la Carmagnole
Vive le son, vive le son
Dansons la Carmagnole
Vive le son du canon !

2. Monsieur Véto avais promis
Monsieur Véto avais promis
D’être fidèle à son pays
D’être fidèle à son pays
Mais il y a manqué
Ne faisons plus quartier

(Refrain)

3. Le patriote a pour amis
Le patriote a pour amis
Tous les bonnes gens du pays
Tous les bonnes gens du pays
Mais ils se soutiendront
Tous au son du canon

(Refrain)

4. Amis restons toujours unis
Amis restons toujours unis
Ne craignons pas nos ennemis
Ne craignons pas nos ennemis
S’ils viennent nous attaquer
Nous les ferons sauter

(Refrain)

5. Oui je suis sans-culotte, moi
Oui je suis sans-culotte, moi
En dépit des amis du roi
En dépit des amis du roi
Vivent les Marseillais
Les Bretons et nos lois !

(Refrain)

6. Oui, nous nous souviendrons toujours
Oui, nous nous souviendrons toujours
Des sans-culottes des faubourgs
Des sans-culottes des faubourgs
A leur santé buvons
Vive ces francs lurons !

(Refrain)

7. Antoinette avait résolu
Antoinette avait résolu
De nous faire tomber sur le cul
De nous faire tomber sur le cul
Mais son [le] coup a manqué
Elle a le nez cassé

(Refrain)

8. Son mari se croyant vainqueur
Son mari se croyant vainqueur
Connaissait peu notre valeur
Connaissait peu notre valeur
Va, Louis, gros paour
Du Temple dans la Tour

(Refrain)

9. Les Suisses avaient promis
Les Suisses avaient promis
Qu’ils feraient feu sur nos amis
Qu’ils feraient feu sur nos amis
Mais comme ils ont sauté !
Comme ils ont tous dansé !

(Refrain)

10. Quand Antoinette vit la Tour
Quand Antoinette vit la Tour
Elle voulut faire demi-tour
Elle voulut faire demi-tour
Elle avait mal au cœur
De se voir sans honneur

(Refrain)

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1. A Sr.ª Veto tinha prometido
A Sr.ª Veto tinha prometido
Mandar degolar Paris inteira
Mandar degolar Paris inteira
Mas sua agressão falhou
Graças à nossa artilharia

Refrão:
Dancemos a Carmanhola
Viva o som, viva o som
Dancemos a Carmanhola
Viva o som do canhão!

2. O Sr. Veto tinha prometido
O Sr. Veto tinha prometido
Ser fiel a seu país
Ser fiel a seu país
Mas ele não cumpriu isso
Vamos matá-lo sem dó

(Refrão)

3. O patriota tem como amigos
O patriota tem como amigos
Todas as pessoas boas do país
Todas as pessoas boas do país
Mas eles ficarão de pé
Todos ao som do canhão

(Refrão)

4. Permaneçamos unidos, amigos
Permaneçamos unidos, amigos
Não temamos nossos inimigos
Não temamos nossos inimigos
Se eles vierem nos atacar
Vamos fazê-los fracassarem

(Refrão)

5. Sim, eu sou sans-culotte
Sim, eu sou sans-culotte
Que falem os amigos do rei
Que falem os amigos do rei
Vivam os marselheses
Os bretões e nossas leis!

(Refrão)

6. Sim, sempre nos lembraremos
Sim, sempre nos lembraremos
Dos sans-culottes dos subúrbios
Dos sans-culottes dos subúrbios
Brindemos à saúde deles
Vivam esses folgazões sinceros!

(Refrão)

7. Antonieta tinha decidido
Antonieta tinha decidido
Pegar-nos desprevenidos
Pegar-nos desprevenidos
Mas sua agressão falhou
Ela se deu mal

(Refrão)

8. Seu marido se dizia vencedor
Seu marido se dizia vencedor
Mas ignorava nossa bravura
Mas ignorava nossa bravura
Vá, Luís, grande bruto
Para a Torre do Templo

(Refrão)

9. Os suíços tinham prometido
Os suíços tinham prometido
Que atirariam em nossos amigos
Que atirariam em nossos amigos
Mas como eles falharam!
Como entraram pelo cano!

(Refrão)

10. Ao ver a Torre, Antonieta
Ao ver a Torre, Antonieta
Quis dar meia-volta
Quis dar meia-volta
Ela estava com náuseas
Por se achar desonrada

(Refrão)

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1. Король обет нарушил свой –
Как верный сын править страной.
Король обет нарушил свой –
Как верный сын править страной.
Ему держать ответ –
Пощады больше нет!

Припев:
Пропляшем «Карманьолу», –
Дружно вперёд! Дружно вперёд!
Пропляшем «Карманьолу», –
Пушечный гром нас зовёт!

2. Дворяне все стоят горой
За короля, за старый строй.
Дворяне все стоят горой
За короля, за старый строй.
Но струсят все они,
Когда пойдут бои.

(Припев)

3. Друзья, сомкнём тесней ряды –
Тогда враги нам не страшны!
Друзья, сомкнём тесней ряды –
Тогда враги нам не страшны!
Пускай откроют бой, –
Мы встретим их пальбой!

(Припев)

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1. O rei quebrou a promessa
De reger o país como filho leal
O rei quebrou a promessa
De reger o país como filho leal.
Ele vai pagar
Sem mais piedade!

Refrão:
Dancemos a Carmanhola,
Juntos avante! Juntos avante!
Dancemos a Carmanhola,
O rugir do canhão nos chama!

2. Nobres erguem-se a todo custo
Pelo rei e pelo antigo regime.
Nobres erguem-se a todo custo
Pelo rei e pelo antigo regime.
Mas todos recuarão
Ao chegarem as lutas.

(Refrão)

3. Amigos, cerremos bem as fileiras
E o inimigo não nos assustará!
Amigos, cerremos bem as fileiras
E o inimigo não nos assustará!
Que comece a batalha,
Os receberemos com fogo!

(Refrão)



Um sans-culotte: “Aqui começa o país da liberdade.”