quarta-feira, 14 de março de 2018

Suicídio ao vivo do repórter Risto Đogo


Link curto para esta postagem: fishuk.cc/ristodogo




Material muito instigante e raro, que achei bem por acaso ao pesquisar vídeos sobre a antiga Iugoslávia. Trata-se do repórter televisivo Risto Đogo, que ao apresentar o noticiário da TV bósnia em língua sérvia no dia 4 de maio de 1993, simulou um suicídio, como mais uma de suas gracinhas que fazia costumeiramente. Ele era conhecido na Bósnia e Herzegóvina por ter tomado partido, durante a guerra civil, dos sérvios ortodoxos que lutavam pra que o novo país não fosse reconhecido e por lançar todo dia diatribes e piadas maldosas contra os muçulmanos da região. Eu baixei o vídeo sem legendas deste canal, que parece ter parado de se atualizar há sete anos.

Apenas a tentativa de achar uma transcrição do pequeno texto me levou a uma pesquisa com muitos resultados. O vídeo está legendado em inglês, mas não confiei muito nessa tradução. A referência é ao plano de paz dito “Vance-Owen”, articulado a partir de janeiro de 1993 por Cyrus Vance, enviado especial da ONU, e David Owen, que representava a Comunidade Europeia, com os líderes das facções em luta na Bósnia. A guerra civil tinha começado em abril de 1992, e em janeiro tinha sido autoproclamada a República Sérvia (de maioria sérvia ortodoxa), cujo presidente era Radovan Karadžić (não confundir com a atual República da Sérvia, país vizinho). O líder assinou o plano em 30 de abril de 1993, mas a Assembleia Nacional (parlamento) da região o rejeitou em 6 de maio, e um criticado referendo o enterraria com 96% dos votos. O plano propunha a divisão da Bósnia em 10 cantões, tentando manter possível uma Bósnia-Herzegóvina unida e mista, mas ele nascia obsoleto, dado que a limpeza étnica e o racha da Bósnia e Herzegóvina já tinham ocorrido.

É a esse plano Vance-Owen que Đogo se refere. Como ele disse, em dois dias o Parlamento local daria a palavra final, e foi pela rejeição. O repórter se tornou mais amplamente conhecido por sua cobertura da guerra civil na Bósnia, num período que foi breve e, por isso, até mesmo artigo sobre ele na Wikipédia só existe na versão sérvia. Ele nasceu em 12 de fevereiro de 1956 na localidade de Kalinovik e se mudou com os pais em 1958 pra Sarajevo, onde fez os estudos básicos e se formou jornalista em 1979. Enquanto subia na carreira, casou-se em 1983 com a economista Gordana Dragaš, com quem teve dois filhos, e em abril de 1992 foi um dos fundadores, no território sérvio da Bósnia, da Srpska radio-televizija, hoje Televizija Republike Srpske (Televisão da República Sérvia). Ao mesmo tempo em que fazia as vezes de repórter de guerra, apresentava um popular Dnevnik (Jornal), no qual ridicularizava a guerra, os bósnios (muçulmanos) e até mesmo o regime iugoslavo de Slobodan Milošević. Seu estilo abertamente preconceituoso deu-lhe popularidade entre os sérvios, mas atraiu o ódio de croatas e muçulmanos.

Sua morte misteriosa, em 12 de setembro de 1994, quando seu corpo foi encontrado na represa de Zvornik, banhada pelo célebre rio Drina, parece a confluência de toda essa polêmica. O corpo não estava com marcas de tiro ou agressão, portanto falou-se num acidente, mas não foi descartado o assassinato por muçulmanos ou por simpatizantes de Milošević. Tive por longos anos no Facebook uma amizade com uma jovem bósnia sérvia de Zvornik, que cursou direito em Belgrado, e o rio Drina, que delimita a fronteira entre Bósnia e Sérvia (esta, o país desde 2006 mesmo), é muito simbólico pra cultura sérvia. O que se convenciona chamar de “servo-croata” ou “BCS” (bósnio-croata-sérvio) é um espectro de dialetos falados por sérvios (ortodoxos), croatas (católicos) e bósnios (muçulmanos), bem como montenegrinos, cada um chamando a língua com seu nome.

A religião foi a motivação real pra guerra: o “sérvio” de Đogo, por exemplo, tem uma característica compartilhada com o “croata” e com a língua “bósnia” padrão, mas não com o “sérvio” de Belgrado, que é o uso de “ije”, e não “e”, no lugar da vogal histórica iat do eslavo antigo. Assim, embora mal se perceba no fim, ele fala riječ (voto, discurso), e não reč, embora use samoubistvo (suicídio), que é o uso sérvio, ao invés do uso croata samoubojstvo. Os ortodoxos usam o alfabeto cirílico, os croatas o latino, e na Bósnia ambos são correntes, de forma que mais abaixo transcrevi a fala nos dois alfabetos. Com custo, achei na publicação (Sarajevo, 2011, p. 849) dos trabalhos apresentados numa conferência de 2009 em Srebrenica sobre o genocídio.

Este artigo de um site pró-sérvios, contando sobre a vida de Đogo e sua morte, em grande parte é a mera transcrição da Wikipédia sérvia pro alfabeto latino. Um relatório em francês redigido em 2003 por um acadêmico na França foi solicitado pelo Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia, tratando justamente do uso da mídia pra difundir os projetos de supremacia sérvia, e cita o repórter várias vezes (há também a versão em inglês). Este site é o que atualmente serve à TV bósnia sérvia, escrito todo em alfabeto cirílico.

Eu traduzi direto do sérvio, legendei e fiz o corte no enquadramento do vídeo. Seguem abaixo a legendagem, que postei no meu canal Eslavo (YouTube), a transcrição nos dois alfabetos e duas traduções pro português, uma abreviada pras legendas, e outra mais literal:



Prevarili ste se. Stavljanjem potpisa na Vens-Ovenov plan Srbi nisu izvršili samoubistvo. Srbi su ovim potpisom samo pokazali svijetu da će ostati i opstati na svojoj teritoriji, na teritoriji Republike Srpske, a parlament će reći svoju riječ.

Преварили сте се. Стављањем потписа на Венс-Овенов план Срби нису извршили самоубиство. Срби су овим потписом само показали свијету да ће остати и опстати на својој територији, на територији Републике Српске, а парламент ће рећи своју ријеч.

Literal: Vocês se enganaram. Ao assinarem o plano Vance-Owen, os sérvios não cometeram suicídio. Com essa assinatura, os sérvios apenas mostraram ao mundo que vão ficar e resistir em seu território, no território da República Sérvia, e o parlamento vai dar sua palavra.

Resumida: Não se enganem. Os sérvios assinaram o plano Vance-Owen, mas não se suicidaram. Com isso só mostraram ao mundo que vão ficar e resistir em seu território da República Sérvia, e o Parlamento vai dar seu voto.