domingo, 22 de fevereiro de 2015

Nova “classe” ou “camada” média em Trotsky?


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As traduções de clássicos do pensamento sistemático mundial a partir de línguas bem diferentes em estrutura das euro-ocidentais (inglês, francês, espanhol, italiano, português) sempre levantaram muitas dificuldades e deram origem a mal-entendidos, especialmente no tocante ao vocabulário. Freud a partir do alemão deve ser o desafio mais conhecido, e também o mais rico em casos, dentre os quais cito apenas a polêmica distinção entre “cultura” e “civilização”. Até dizem por aí, também, que a virgindade de Maria teria se baseado em problemas de tradução dos textos sagrados do hebraico para o grego...

O russo não causa menos problemas, principalmente porque em vários domínios seu vocabulário é bem mais rico do que os das línguas euro-ocidentais, e só para “trabalho”, “trabalhador”, “escravo”, “batalha” e “lutador”, por exemplo, existem diversos sinônimos que ainda por cima, às vezes, fazem o favor de aparecer juntos em trechos bem curtos de texto! Na semana passada mesmo troquei alguns e-mails com Alvaro Bianchi, professor de ciência política da Unicamp, militante do PSTU, especialista e teórico da ideologia e prática trotskistas, a respeito de uma expressão que aparece em algumas traduções inglesas de textos de Leon Trotsky, e que Alvaro julgava ser a tradução errada de alguma expressão do alemão ou do russo.

Segue abaixo o essencial de sua primeira mensagem do dia 19 de fevereiro, com algumas adaptações, mas que nos ensina muita coisa interessante: “Trotsky escrevia em russo, obviamente, mas também era fluente em alemão e ocasionalmente escrevia em francês. O problema está com os textos do exílio mexicano, os quais eram vertidos para o inglês imediatamente e publicados nessa língua em revistas como New International, ou no jornal The Militant. Minha dúvida está com uma expressão que geralmente é traduzida por ‘nova classe média’. Ela aparece em dois textos publicados em inglês em 1938 e 1939 como ‘new middle classes’. Minha dúvida é se essa foi uma tradução exata. Em Marx é comum a expressão ‘Mittelstand’, que literalmente é camadas ou estratos médios. Com Marx as traduções em inglês cometem a impropriedade de traduzir ‘Mittelstand’ por ‘middle class’.”

“O erro pode ter se reproduzido com Trotsky. Na literatura alemã, particularmente nos textos de Kautsky, nos quais aparece pela primeira vez essa noção, a expressão utilizada é ‘neuen Mittelstand’. Em alguns textos de Trotsky que eu tenho certeza que foram imediatamente publicados em alemão (particularmente aqueles sobre o nazismo), a palavra usada é ‘neuen Mittelstand’ (ler o texto “Was Nun?”). Ele pode ter escrito esses textos em alemão ou revisado as traduções. Em outros, aparentemente traduzidos do inglês, a expressão utilizada é ‘neuen Mittelklassen’ (ler o texto “Neunzig Jahre Kommunistisches Manifest). A resposta para a questão pode estar nas edições russas de Nossas tarefas políticas (ler a parte 3 em inglês) e de 1905 (ler o capítulo 4 em inglês), ambas existentes nas Sochinenia, as obras completas de Trotsky. Nas edições em inglês aparece a expressão ‘new middle classes’. Você faz ideia de qual é a palavra utilizada por Trotsky em russo nesses dois textos? Tem como descobrir isso?”

Na sequência, as ideias principais de minha resposta. Entre os dias 19 e 20, fiz uma pesquisa no Google e em páginas com obras de Trotsky em russo digitalizadas, e a primeira coisa que notei foi a citação, no prefácio em inglês de Nossas tarefas políticas que o Alvaro me indicou, de quão raro é achar essa obra em qualquer língua, por causa da contradição entre seu conteúdo político e a adesão posterior de Trotsky às fileiras bolcheviques. E de fato, mesmo procurando muito, não achei em russo nem essa obra, que de fato existe como uma brochura chamada Наши политические задачи [Nashi politicheskie zadachi], nem 1905.

Porém, combinei algumas palavras em russo também no Google com o que seria “nova classe média” em russo (“новый средний класс” [novy sredni klass]), e acabei chegando a obras de Trotsky que usavam o termo “новое среднее сословие” [novoye sredneie soslovie], sendo “сословие” [soslovie], pois, o termo em torno do qual gira a questão.

Segundo minhas consultas a dicionário e enciclopédia, “сословие” [soslovie] tem várias traduções, dentre as quais “classe” mesmo, “estamento”, “estado” (como em “terceiro estado”), “casta”, “grêmio”, “ofício”, “grupo” (por exemplo, na expressão “женское сословие” [zhenskoie soslovie], “o mulherio”), e acredito que se refira a um grupo mais fechado, que exige algum tipo de iniciação ou a posse de uma característica inata ou herdada, sendo que na Wikipédia o artigo em russo “Soslovie” remete ao português “Estamento”. Não conheço alemão para confirmar a equivalência com os termos que o Alvaro me indicou nessa língua, e lhe sugeri polidamente que talvez ele compreendesse melhor do que eu essa sociologia das “camadas” e “classes” ao longo da história.

Em todo caso, apontei-lhe ainda que nessa busca acabei caindo em outros escritos de Trotsky, e um deles que me chamou mais a atenção está no tomo 4 das Sochinenia, tomo que se chama “Ante um limiar histórico. Crônica política” e tem artigos dele relacionados a acontecimentos políticos entre 1900 e 1914. Como o Alvaro disse, vários desses artigos foram publicados em jornais estrangeiros e tiveram de ser traduzidos para o russo. Nesse tomo, há uma subdivisão chamada “Às vésperas da revolução” (referência à Revolução Russa de 1905), em que se encontram vários artigos publicados no Iskra (periódico de socialistas russos exilados do início do século 20) entre 1903 e 1905, e sete deles estão agrupados sob o título geral de “Cartas políticas”, embora eu não saiba o contexto geral de sua redação, nem por que receberam juntas esse título.

O referido artigo saiu no número 59 do Iskra de 10 de fevereiro de 1904 e tem o longo título “Новое ‘среднее сословие’. Выборы в Петербургскую думу. ‘Более или менее социалистическая’ демократия. ‘Оседло-образовательный’ ценз. Кто скажет последнее слово?”, traduzindo aproximadamente, “A nova ‘classe [soslovie] média’. Eleições para a Duma de São Petersburgo. Uma democracia ‘mais ou menos socialista’. Grau de ‘instrução-sedentarismo’. Quem dirá a última palavra?”. A tradução dos escritos dessa época é um tanto difícil, porque Trotsky se vale de um estilo muito peculiar, com ironias e repetições só compreensíveis naquele contexto. Porém, as primeiras palavras do artigo são as seguintes, muito sugestivas:

Русская “интеллигенция” дописывает последние страницы своей истории. Ее рост, развитие, упрочение ее позиций вызывают полное ее перерождение. Из своеобразного “ордена” с привлекательной романтической окраской она превращается в прозаическое “среднее сословие” буржуазного общества. В среднее сословие, ибо она стоит между крайними социальными классами, буржуазией и пролетариатом.
Tradução aproximada:
A “intelligentsia” russa está concluindo a escrita da última página de sua história. Seu crescimento, desenvolvimento e o fortalecimento de suas posições estão provocando seu pleno renascimento. De algo semelhante a uma “ordem” com uma atraente coloração romântica, ela está se transformando numa prosaica “classe [soslovie] média” da sociedade burguesa. É uma classe [soslovie] média, pois se localiza entre as classes [klassami, instrumental plural de klass] sociais extremas, a burguesia e o proletariado.
Como o paciente leitor deste blog deve ter notado, falei, falei, joguei inúmeras informações e no fim não dei nenhuma resposta pronta sobre a tradução da palavra russa “soslovie”. De fato, só notei isso ao terminar de transformar esta conversa em postagem, mas acredito que a resposta agradecida do Prof. Alvaro Bianchi já no fim da tarde do dia 20 deu o fecho que supre minha omissão involuntária: “Fiz outras consultas e cheguei à conclusão de que no início do século 20 a palavra ‘soslovie’ era utilizada na literatura marxista com o sentido de ‘estamento’ ou ‘casta’. Assim, parece-me que a melhor tradução para ‘новое среднее сословие’ [novoie sredneie soslovie] é ‘nova camada média’ ou ‘novos estamentos médios’. Quando se fala de classe burguesa ou classe operária, em russo o termo é sempre ‘класс’ [klass], e nunca ‘soslovie’.”

Coisas da vida, hehehe. Minha alegria só aumentou quando ele comunicou, por fim, que “Quando terminar de redigir a pequena nota na qual estou trabalhando te envio para dar uma olhada.” Vamos aguardar, quem sabe até eu não comunique algo a vocês quando sair!

Nota (29/5/2015): Um acadêmico, após ler esta postagem, enviou em meu e-mail pessoal alguns excertos de textos de Gregory L. Freeze, historiador da Rússia e professor da Universidade Brandeis, localizada em Waltham, perto de Boston, nos EUA. Um deles é o curto verbete “Soslovie”, da Encyclopedia of Russian History, publicado no site Encyclopedia.com. Outro é o artigo “The Soslovie (Estate) Paradigm and Russian Social History”, publicado na American Historical Review, vol. 91, n. 1 (Feb., 1986), pp. 11-36, e que pode ser visualizado e baixado na base de dados JSTOR, mas apenas em computadores de faculdades ou outras entidades cadastradas. Eu não tive tempo de ler a fundo os textos, mas quem quiser se aventurar, fique à vontade! Também agradeço ao amigo correspondente pelas dicas.



“Até a próxima postagem, amigos! Nos encontramos na revolução!”

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Luto de Hollande por “Charlie Hebdo”


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Em Paris, logo após o atentado terrorista à sede do jornal satírico Charlie Hebdo a 7 de janeiro de 2015, o Presidente da República François Hollande falou em cadeia nacional sobre o crime, louvando as vítimas como “heróis da liberdade”, agradecendo às mensagens de solidariedade vindas do mundo inteiro, prometendo capturar, julgar e punir os atiradores e pedindo à população que permanecesse unida como principal arma contra o medo.

A comoção em torno dos assassinatos desses cartunistas e jornalistas daria espaço, nos dias seguintes, ao movimento “Nous sommes tous Charlie” (Somos todos Charlie), para defender a liberdade de expressão e de imprensa, condenar a disseminação do terror por motivos religiosos e garantir a continuidade da publicação do periódico, apesar das graves baixas e das ameaças recebidas havia muitos anos. Na sequência da caçada aos criminosos, eles acabaram sendo mortos pela polícia após praticarem outros delitos, frustrando o desejo de Hollande de vê-los julgados e punidos.

Difundiu-se por algum tempo nas redes sociais o uso da mensagem em preto “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie), mas alguns críticos julgaram como mais graves os frequentes “insultos” às religiões que os desenhistas faziam e a suposta “incitação” à islamofobia daí derivada, já que eram comuns caricaturas que diziam retratar o profeta Maomé. Após o atentado, ocorreram até mesmo muitas manifestações antifrancesas e antiocidentais em países muçulmanos, culminando em estrangeiros mortos e igrejas e embaixadas depredadas.

O título original do pronunciamento é “Allocution à la suite de l’attentat au siège de Charlie Hebdo”, publicado na página do Élysée, a Presidência da República francesa, e que é acompanhado do vídeo, do áudio e de uma versão em PDF para baixar. O vídeo que legendei foi baixado do canal YouTube da agência de notícias RT France, e pode ser assistido nesta página. Eu traduzi e legendei o vídeo do pronunciamento, e as legendas sempre têm alguma adaptação em relação ao texto escrito, o qual, porém, pode ser lido mais abaixo, logo após o vídeo:


Meus caros compatriotas,

A França foi hoje atacada em Paris, seu coração, nas próprias instalações de um jornal. Esse tiroteio extremamente violento matou doze pessoas e feriu várias outras. Desenhistas de grande talento, cronistas corajosos foram mortos. Eles haviam marcado, por sua influência, sua insolência e sua independência, gerações e gerações de franceses. Quero dizer aqui a eles que continuaremos a defender essa mensagem de liberdade em seu nome.

Este desprezível atentado matou também dois policiais, aqueles mesmos que estavam encarregados de proteger o Charlie Hebdo e a redação dele, que eram há anos ameaçados pelo obscurantismo e que defendiam a liberdade de expressão.

Esses homens e essa mulher foram mortos pela ideia que tinham da França, isto é, a liberdade. Em nome de vocês, quero expressar aqui todo nosso reconhecimento às famílias, às vítimas, aos feridos, a seus próximos, a todos os que sofreram na pele com este desprezível assassinato. Eles são hoje nossos heróis, e por isso decretei que amanhã será um dia nacional de luto. Às doze horas haverá um momento de concentração em todos os serviços públicos, do qual convido toda a população a participar. As bandeiras ficarão por três dias a meio mastro.

Hoje, a República inteira é que foi agredida. A República é a liberdade de expressão. A República é a cultura, é a criação, é o pluralismo, é a democracia. É tudo isso que era visado pelos assassinos. É o ideal de justiça e paz que a França leva para todo o cenário internacional e essa mensagem de paz e tolerância que defendemos também por meio de nossos soldados na luta contra o terrorismo e o fundamentalismo.

A França recebeu mensagens de solidariedade e fraternidade do mundo inteiro, das quais devemos bem avaliar a dimensão. Temos de responder à altura este crime que nos atinge, primeiro buscando os autores dessa infâmia e fazendo com que eles possam ser presos, e então julgados e punidos com todo rigor. Tudo será feito para capturá-los. A investigação está avançando sob a autoridade da justiça.

Devemos também proteger todos os locais públicos, e o governo pôs em operação o chamado plano Vigipirate Attentat, isto é, forças de segurança serão deslocadas por toda a parte, onde quer que possa haver um foco de ameaça.

Nós mesmos, enfim, devemos ter em mente que nossa melhor arma é a unidade, a unidade de todos os concidadãos diante dessa adversidade. Nada pode nos dividir, nada deve nos opor e nada deve nos separar. Amanhã reunirei os presidentes das duas assembleias, bem como as forças representadas no Parlamento, para mostrarmos nossa determinação comum.

A França é grande quando consegue, numa adversidade, alçar-se ao melhor padrão, ou seja, seu padrão, o padrão que sempre permitiu ao país superar seus problemas. A liberdade será sempre mais forte do que a barbárie. A França sempre venceu seus inimigos quando soube justamente se congregar em torno de seus valores. É o que convido vocês a fazer. A união, a união de todos, sob todas as formas, é que deve ser nossa resposta.

Unamo-nos diante dessa adversidade. Nós venceremos, pois temos todas as aptidões para crer em nosso destino e nada poderá arrefecer essa determinação que é tão nossa.

Unamo-nos.

Viva a República e viva a França!



domingo, 8 de fevereiro de 2015

A “Canção do exílio” em interlíngua


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Revelo pouco às pessoas, mas tenho uma incipiente veia poética, por vezes manifesta em originais em português ou outras línguas, por vezes em traduções de clássicos da língua portuguesa para outras línguas. À medida que minhas obrigações acadêmicas foram apertando, e que me centrei mais na tradução de prosa histórica, fui deixando a poesia de lado, mas ainda guardo com carinho muitos resultados.

Um deles é a tradução da famosa “Canção do exílio”, escrita em 1843 pelo poeta brasileiro Gonçalves Dias (1823-1864), para a interlíngua, um idioma auxiliar planejado que veio à luz nos Estados Unidos em 1951, é muito parecido com as principais línguas românicas e tentou ocupar o lugar do esperanto como principal candidato a língua internacional que substituísse o inglês e o francês como instrumentos da diplomacia, do intercâmbio entre os povos e da difusão cultural. Mantive o esquema métrico e de rimas, embora não mantivesse todas as rimas iguais entre uma versão e outra, e consegui não colocar nenhum adjetivo, assim como na versão em português. Como toda tradução poética, esta não é literal, mas tentei passar ao máximo a mesma ideia da primeira versão.

A versão final de minha tradução está datada de 13 de dezembro de 2012, mas minha declamação em áudio só foi dada a público em 4 de março de 2013, no site da Radio Interlingua, administrada por meu amigo húngaro Péter Kovács, na emissão concernente àquele mês que pode ser escutada na própria página clicando em “Ascolta”, ou baixada, clicando em “discarga file audio”. Você também pode assistir ao vídeo abaixo (legendas) apenas com o áudio da minha declamação, sem o programa. Após o texto do poema, dou outras informações sobre a interlíngua!

____________________


Canto del exilio

Mi pais habe palmieros,
Ubi canta un Sabia;
Ci le aves nunquam trilla
Equalmente como la.

Nostre celo: plus de stellas,
Nostre valles: plus de flores,
Nostre boscos: plus de vita,
Nostre vita: plus de amores.

In soniar sol in le nocte
Io gaude me plus la;
Mi pais habe palmieros,
Ubi canta un Sabia.

Mi pais ha meravilias
Que le terra ci non da;
In soniar – sol, in le nocte –
Io gaude me plus la;
Mi pais habe palmieros,
Ubi canta un Sabia.

Ante deceder, oh Deo,
Io vole vader la;
E fruer le meravilias
Que le terra ci non da;
E vider ille palmieros,
Ubi canta un Sabia.



A interlíngua, também conhecida como Interlingua de IALA, resultou de um intenso trabalho de pesquisa conduzido entre 1924 e 1951 por especialistas reunidos na IALA (sigla em inglês para Associação para a Adoção de uma Língua Internacional), dos EUA. Levando ao extremo o ideal de compreensão imediata e visando menos à regularidade gramatical do que, por exemplo, o esperanto, teve editados, ao final dos trabalhos, um dicionário interlíngua-inglês e uma gramática em inglês, especialmente por obra do alemão naturalizado norte-americano Alexander Gode (1906-1970) e do norte-americano Hugh Blair (1909-1967).

É considerada sua característica principal a compreensibilidade praticamente perfeita a falantes de idiomas ocidentais, especialmente os românicos, por ter como fonte elementos que aparecem ao menos em duas ou três das principais línguas de cultura do mundo ocidentalizado: o inglês, o francês, o italiano e, considerados em conjunto, o espanhol e o português. Também são utilizados abundantes radicais latinos e gregos de uso internacional, e são aceitas ainda palavras eslavas, germânicas ou de outras origens que tenham se difundido mundialmente.

Para saber mais sobre a interlíngua em português, conheça a União Brasileira Pró-Interlíngua, e para saber na própria interlíngua, verificando se você já a entende à primeira leitura, visite a página da Union Mundial Pro Interlingua. Você pode ainda ler o ótimo artigo da Wikipédia em inglês a respeito ou visitar o blog de um amigo americano, Interlingua multilingue, também com vários textos em interlíngua, mas que não é atualizado desde 2011.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

“Encantação pelo riso”, de Khlebnikov


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Sempre gostei de traduzir prosa, especialmente textos em russo do período soviético, com cujo vocabulário estou acostumado. Mas hoje estou me arriscando pelo caminho pétreo da tradução de poesia, cujas dificuldades residem exatamente no fato de termos que sacrificar muito do conteúdo para manter o efeito da forma, e às vezes nem sempre serem iguais os valores do que é ou não poético em uma ou outra sociedade. Por isso mesmo, em poesia nem sempre devemos esperar “corretas traduções literais”, como nos ensinam um dos miniclássicos no assunto, Oficina de tradução: a teoria na prática, de Rosemary Arrojo, e, mais recente e mais específico sobre poesia, Tradução: teoria e prática, de John Milton.

Tendo conhecido meu trabalho de tradução e legendagens, um rapaz me contatou pelo Facebook para falar de um poema do russo Viktor Vladimirovich Khlebnikov, mais conhecido sob o nome artístico de Velimir Khlebnikov (Велимир Хлебников), nascido em 1885 e falecido em 1922. Também dramaturgo, foi cronologicamente o primeiro vanguardista na poesia russa e uma figura central no movimento futurista nacional, embora sua influência tenha ultrapassado essas fronteiras. O referido poema, denominado “Заклятие смехом” (Zakliatie smekhom) e escrito em 1908 ou 1909, foi traduzido no Brasil pelos irmãos Campos nos anos 1950, e era uma versão de que aquele jovem gostava muito, com o título “A encantação pelo riso”. Ele também havia encontrado, após alguma pesquisa, uma versão em inglês, cuja fonte, título e tradutor ele não soube me dizer, e que em sua opinião “é muito fechada e peremptória, me remete quase que a Joyce”, enquanto a brasileira “é muito mais lúdica, apesar dos termos”.

Seu desejo que o motivou a me escrever era o de sempre querer “saber em russo como é, se o poema está mais bem traduzido em português ou inglês, qual o verdadeiro sentido que Khlebnikov quis lhe dar”; enfim, “saber qual que se aproxima mais do original”, “tentar alcançar o que o Khlebnikov realmente quis dizer”. Por isso, quebrando um pouco a ordem cronológica de nossa conversa, vou postar primeiro a versão em russo, que achei na Wikipédia, depois em português e finalmente em inglês:


«Заклятие смехом»

О, рассмейтесь, смехачи!
О, засмейтесь, смехачи!
Что смеются смехами, что смеянствуют смеяльно,
О, засмейтесь усмеяльно!
О, рассмешищ надсмеяльных — смех усмейных смехачей!
О, иссмейся рассмеяльно, смех надсмейных смеячей!
Смейево, смейево,
Усмей, осмей, смешики, смешики,
Смеюнчики, смеюнчики.
О, рассмейтесь, смехачи!
О, засмейтесь, смехачи!


“A encantação pelo riso”

Ride, ridentes!
Derride, derridentes!
Risonhai aos risos, rimente risandai!
Derride sorrimente!
Risos sobrerrisos - risadas de sorrideiros risores!
Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros!
Sorrisonhos, risonhos,
Sorride, ridiculai, risando, risantes,
Hilariando, riando,
Ride, ridentes!
Derride, derridentes!


O, laugh, laughers!
O, laugh out, laughers!
You who laugh with laughs, you who laugh it up laughishly
O, laugh out laugheringly
O, belaughable laughterhood - the laughter of laughering laughers!
O, unlaugh it outlaughingly, belaughering laughists!
Laughily, laughily,
Uplaugh, enlaugh, laughlings, laughlings
Laughlets, laughlets.
O, laugh, laughers!
O, laugh out, laughers!


Como eu havia dito, embora eu tenha traduzido alguma poesia para o esperanto e para a interlíngua, nunca fui um especialista no assunto, e o que respondi ao rapaz foi uma percepção baseada naqueles dois livros que citei inicialmente. A primeira coisa que notei de cara é que não há preocupação com métrica: essa despreocupação também passou às traduções. Segundo minha pesquisa na Wikipédia em russo, o poema original nasceu de uma técnica do Khlebnikov que consistia em formar famílias de neologismos a partir de um mesmo radical, o que achei semelhante a um famoso hábito de Guimarães Rosa. Por isso abundam prefixos, sufixos, mutações consonânticas e flexões... O russo é uma língua muito rica e frutífera nessas derivações, então ele pôde jogar inclusive com terminações de adjetivos, verbos etc., em suas várias pessoas e casos. Além de tudo as palavras são bem compridas, o que dá dinamismo à fala.

A sacada principal do poema foi jogar com três formas de um radical do russo que passa a ideia de “riso”, “graça”, e que se encontram nestas palavras: “смех” (smekh – riso), “смеяться” (smeiatsia – rir) е “смешно” (smeshno – engraçado). Assim, esses três radicais (smey-, smekh-, smesh-) se combinam com uma infinidade de prefixos e sufixos que dão os mais finos matizes de significado. Por exemplo, “рассмейтесь”, “смехачи”, “засмейтесь”, “смеянствуют”, “усмеяльно”, “рассмешищ”, “смейево”, “смеюнчики” etc.

Esses radicais e afixos promovem uma riqueza sonora que passa a ideia do riso, da zombaria, do fuxico, do sussurro, e que se dá essencialmente em torno das consoantes С (som de SS, especialmente em sua versão branda, palatizada; escute a palavra russa “семь”, com essa palatal), Х (que soa como o J espanhol) e Ш (versão dura do nosso CH). Acresçam-se também vários sufixos diminutivos em que aparecem as consoantes Ч (TCH) e Щ (versão branda do nosso CH; escute a palavra russa “щи”, com essa consoante), também chiantes. Acredito que a repetição das vogais Я (YA), Е (YE) e Ю (YU), além da semivogal Й (Y, como no inglês “yard” ou “say”), também ajuda no efeito.

Flexões ricas e palavras compridas são propriedades muito presentes no russo, um pouco menos no português e quase ausentes no inglês, e isso justifica a impressão do rapaz, para quem a versão nesta língua seria repetitiva e breve. Acredito que os três poemas também trabalham com os sons que cada língua considera característicos do riso: a concepção de russo e do português é mais consonântica, e a dos ingleses, mais vocálica, e acredito que com um toque de glotalismo. Por isso a versão em inglês fica limitada à combinação dos sons “ló”, “lóf”, derivada do único radical repetido (“laugh”), enquanto a versão em português nos oferece no máximo duas consoantes associadas ao riso e à zombaria (RR e Z), a partir de derivados de “rir” e “riso”. Como falei acima, o russo tem uma repetição de chiantes, sibilantes, fricativas e palatais inimitável em qualquer tradução.

Além da parte formal, ainda não falei do conteúdo. Afinal, como disse nosso amigo do Facebook, “Eu queria saber qual que se aproxima mais do original. Queria tentar alcançar o que o Khlebnikov realmente quis dizer”. De fato, logo após começar a consultar dicionários, eu desisti, pois quase todas as palavras estão ausentes de dicionários russos, e a saída dos tradutores deve ter sido, portanto, “inventar” eles também palavras novas em suas línguas para manter a graça do poema. A qualquer um que leia o poema em russo resta a alternativa de captar nos prefixos e sufixos as ideias de “início”, “dispersão”, “excesso”, “agentes”, “maneiras”, “propriedades”, enfim, combiná-las com a ideia mais geral de “riso” ou “graça” e ao menos entender o sentido global de cada palavra, e não tentar achar outras palavras que traduzam literalmente esses neologismos.

Portanto, de forma geral, as duas traduções estão “próximas” na semântica, mas o português consegue recriar um pouco mais que o inglês o efeito sonoro. Mesmo assim, na verdade os dois estão muito longe de recriar o efeito primário, e se o objetivo do leitor é buscar o que Khlebnikov quis dizer, que ele “largue mão”, como dizemos no interior de São Paulo: tradução não é transposição de palavras, mas interpretação (quase sempre subjetiva) do conteúdo da língua de chegada e recriação da forma na língua de partida. E ainda mais em poesia, geralmente o conteúdo é sacrificado em favor da forma. Por isso falei que na busca de tentar recriar as invenções neologísticas do russo, os dois autores acertaram, mas a língua russa tem vários aspectos formais que se mostraram irreproduzíveis: a riqueza de consoantes sibilantes, chiantes e palatais; a riqueza de prefixos e sufixos formadores de todas as classes de palavras e que dão vários matizes precisos de significado; a riqueza das terminações de caso, que permitem ampliar ainda mais os efeitos sonoros.