domingo, 28 de dezembro de 2014

Hino da Internacional Comunista


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Esta canção foi empregada como hino da Internacional Comunista (ou 3.ª Internacional, ou Comintern), o órgão dirigente de todos os Partidos Comunistas do mundo a partir de Moscou, de 1930 até 1943, quando a organização foi dissolvida. A melodia foi composta por Hanns Eisler, a letra original em alemão por Franz Jahnke e Maxim Vallentin, e a tradução para o russo por Ilia Frenkel.

Originalmente, ela foi criada em 1928 para um programa teatral de agitação e propaganda, o Krasny rupor (Porta-Voz Vermelho), dedicado ao décimo aniversário de fundação da Comintern e executado em março de 1929 em Berlim. A letra em alemão, chamada Kominternlied (Canção da Comintern), tinha um significado bastante diferente. Em novembro de 1930, em Moscou, Eisler apresentou privadamente a canção para o compositor soviético Nikolai Chemberdzhi, que gostou dela e instou a que fosse transformada no hino da Internacional. Já em janeiro de 1931, a letra em russo de Ilia Frenkel, escrita especialmente para esse fim e transformada no Gimn Kominterna (Hino da Comintern), foi publicada na revista Za proletarskuiu muzyku (Por uma Música Proletária) e se tornou muito popular na União Soviética.

Após a Segunda Guerra Mundial e não existindo mais a Comintern, a canção tomou dois rumos. Na recém-formada Alemanha Oriental, o escritor Stephan Hermlin reformulou toda a letra em alemão, mantendo intacta apenas a segunda estrofe, e a canção passou a se chamar Lied der Werktätigen (Canção dos Trabalhadores). Na URSS, a segunda estrofe se tornou a quarta, o último verso dessa estrofe (“Наш лозунг - Всемирный Советский Союз!” ‒ Nossa palavra de ordem: uma União Soviética Mundial!) foi trocado (“Товарищ, борись за свободу свою!” ‒ Camarada, combata pela própria liberdade!) e o primeiro verso da quarta/terceira estrofe teve a palavra “Коминтерна” (da Comintern) trocada por “коммунистов” (dos comunistas). A canção passou a ser intitulada pelas suas primeiras palavras, Zavody, vstavaite! (Levantem-se, fábricas!).

A versão que traduzi e legendei é essa segunda do pós-guerra, executada pelo Grande Coral da Rádio Soviética, com solo de Piotr Kirichek, em 1958. Infelizmente não achei nenhuma gravação da versão completa do Hino, mas apenas uma bem antiga em que se cantam apenas a primeira e a segunda/quarta estrofes. Achei melhor usar a versão completa posterior na legendagem, e indicar aqui no blog, com notas de rodapé, no que o hino se diferenciava. Podem ser lidas nesta página as duas versões em russo, mas também postei abaixo o texto com as diferenças.

Esta introdução explicativa tem informação da Wikipédia em russo e desta página também em russo, com uma história da canção e com as duas variantes em alemão. E abaixo, o vídeo pro qual não fiz alterações na letra, já que com música temos limites mais flexíveis pra fazer legendagem:


Заводы, вставайте! Шеренги смыкайте!
На битву шагайте, шагайте, шагайте!
Проверьте прицел, заряжайте ружьё!
На бой пролетарий за дело своё!
На бой пролетарий за дело своё!

Товарищи в тюрьмах, в застенках холодных,
Вы с нами, вы с нами, хоть нет вас в колоннах,
Не страшен нам белый фашистский террор,
Все страны охватит восстанья костёр!
Все страны охватит восстанья костёр!

На зов коммунистов стальными рядами (1)
Под знамя советов, под красное знамя!
Мы красного фронта отряд боевой,
И мы не отступим с пути своего!
И мы не отступим с пути своего!

(2) Огонь ленинизма наш путь освещает,
На штурм капитала весь мир поднимает!
Два класса столкнулись в последнем бою;
Товарищ, борись за свободу свою!
Товарищ, борись за свободу свою! (3)

____________________


Levantem-se, fábricas! Cerrem as fileiras!
Marchem para o combate, marchem, marchem!
Verifiquem a pontaria, carreguem os fuzis!
À luta, proletário, conquistar o que lhe cabe!
À luta, proletário, conquistar o que lhe cabe!

Camaradas na prisão, nas frias câmaras de tortura,
Vocês estão conosco, conosco, mesmo ausentes das colunas,
Não temos medo do terror branco fascista,
O fogo da rebelião envolverá todos os países!
O fogo da rebelião envolverá todos os países!

Ao chamado dos comunistas, em fileiras de aço (1)
Todos sob a bandeira vermelha dos sovietes!
Somos o destacamento bélico da frente vermelha,
E não nos desviaremos do nosso caminho!
E não nos desviaremos do nosso caminho!

(2) A chama do leninismo ilumina nosso caminho
E instiga o mundo inteiro a atacar o capital!
Duas classes se enfrentaram na luta final;
Camarada, combata pela própria liberdade!
Camarada, combata pela própria liberdade! (3)


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) Redação deste verso na primeira versão: “На зов Коминтерна стальными рядами” (Ao chamado da Comintern, em fileiras de aço).

(2) Na primeira versão, esta estrofe era a segunda.

(3) Redação destes dois últimos versos na primeira versão: “Наш лозунг – Всемирный Советский Союз!” (Nossa palavra de ordem: uma União Soviética Mundial!).



Stalin e outros líderes comunistas à frente do 7.º (e último) Congresso da Comintern, em 1935.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Problemas de tradução do francês


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Por Erick Fishuk


Esta é mais uma nota de Facebook que estou transformando em postagem do blog, mais para encher linguiça mesmo, sendo sincero. Mesmo assim, espero que como meio de compartilhar experiências, ela seja útil também a outras pessoas. São algumas anotações sobre as soluções a que cheguei ao traduzir do francês um artigo sobre o famoso “relatório secreto”, lido por Nikita Khruschov no 20.º Congresso do Partido soviético em 1956, e sobre sua difusão entre a população local e outros países comunistas. A referência bibliográfica do artigo é esta: Branko LAZITCH, “Le «Rapport secret» de Khrouchtchev entre la petite et la grande histoire” [O “Relatório Secreto” de Khrushchov entre a pequena e a grande história], Communisme, n. 9, 1.º trimestre/1986, pp. 52-58. Minha tradução pode ser lida aqui.

Para mais informações sobre pressupostos tradutórios e outros livros teóricos, acesse e leia também minhas outras três postagens sobre problemas de tradução do russo. Recomenda-se que o leitor da presente postagem tenha algum conhecimento de francês para acompanhar melhor meu raciocínio.



FILOSOFIA

Um tradutor não é um mero transpositor de palavras, mas um leitor e entendedor aguçado e um escritor ainda mais apurado. Em resumo: deve praticamente reconstruir o texto em português com base no entendimento exato da ideia do texto de partida. Em grande parte dos casos, isso mina a ideia de “tradução literal” ou “palavra por palavra” como o modelo ideal de tradução que os leigos têm na cabeça.

Vejam este trecho, por exemplo:

“La Pologne devint la filière par laquelle le Rapport secret se transforma en Rapport public. Edward Ochab fut le témoin décisif à cet égard, et ce par deux fois !”

Eu cheguei a isto (posso ter cometido equívocos):

“A Polônia foi a fresta pela qual o Relatório Secreto escapou para se tornar um Relatório Público. Edward Ochab confirmou decisivamente esse fato, e por duas vezes!”

É praticamente uma atividade de decifração, porque literalmente ficaria horrível...


PROCEDIMENTOS TÉCNICOS

Segundo a classificação feita por Heloísa Gonçalves Barbosa (Procedimentos técnicos da tradução: uma proposta, 2.ª edição, Campinas, SP, Pontes, 2004), teríamos abaixo um exemplo de “explicitação” em tradução, isto é, a adição de elementos que tornam claro ao leitor estrangeiro algo que talvez fosse mais evidente ao leitor nativo.

Exemplo (do francês): Num texto sobre a URSS de 1956, “Institut de la littérature mondiale” pode ser desdobrado em “Instituto Gorki de Literatura Mundial, em Moscou”, acrescentando o nome da cidade e a homenagem onomástica que é sempre feita em russo.

Segundo o mesmo sistema, neste caso teríamos uma “transposição”, ou seja, a mudança de categoria gramatical para passar a mesma ideia semântica:

“Au départ des événements on trouve tout simplement un document confidentiel.” (Francês)

“Na origem dos eventos encontra-se um simples documento confidencial.”

tout simplement (advérbio) > simples (adjetivo).

“Compensação” é o procedimento que desloca para outro ponto do texto de chegada o efeito dado por um elemento em determinado ponto do texto de partida. Assim, por exemplo, se uma palavra não fica adequada, na tradução, em determinado ponto, pode ser colocada em outro:

“Au temps de Khrouchtchev encore, le fameux monolithisme était un joyau précieux dans la couronne du parti” (Francês).

“Nos tempos de Khruschov, o célebre monolitismo ainda era uma joia preciosa da coroa do Partido” (Português: notar deslocamento da palavra “encore”/“ainda”).



domingo, 14 de dezembro de 2014

Às mulheres trabalhadoras (Kollontai)


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Introdução (Erick Fishuk)

Esta é a tradução da transcrição de uma gravação muito rara da voz da feminista russo-soviética Aleksandra Mikhailovna Kollontai, uma das poucas mulheres a ocuparem um cargo de comissária do povo (ministra) na antiga URSS. Não encontrei a data exata da gravação, mas conforme indicações indiretas, pode ter sido feita por volta de 1918, e de fato sua voz ainda parece bastante jovem aí.

Sucintamente, Kollontai celebra a equiparação, logo depois da Revolução Bolchevique, dos direitos das mulheres aos dos homens, mas lembra que apenas a letra da lei não basta para mudar a realidade, na qual de fato as trabalhadoras continuavam submetidas à dupla jornada do labor externo e dos cuidados com a casa. Por isso, a feminista instiga os operários e camponeses homens a ajudar nessa transformação e compreender o quanto elas são iguais a eles em direitos, e chama as mulheres a tomar a liderança de sua emancipação por meio da ampliação da infraestrutura de apoio familiar e do apoio ativo à luta política dos comunistas.

O discurso foi dado a público pela primeira vez ao ser inserido no audiolivro em russo (o primeiro de confecção soviética) Sobre Lenin, organizado por um grupo de jornalistas em 1970 e lançado pela editora Pravda, de Moscou. A obra pode ser baixada nesta página. O título em russo é “К работницам” (K rabotnitsam). O áudio e o texto em russo também estão disponíveis nesta seção do site Sovmusic.ru. A versão em russo e uma tradução em espanhol também se encontram nesta postagem de um blog comunista. Abaixo você pode ver também o próprio vídeo legendado:


Camaradas trabalhadoras!

Por longos séculos a mulher não teve liberdade e direitos, pois era tratada como um mero apêndice, como a sombra do homem. O marido sustentava a esposa, e em troca ela se curvava ao seu arbítrio, suportando quieta a falta de justiça e a servidão familiar e doméstica. A Revolução de Outubro emancipou a mulher: hoje as camponesas têm os mesmos direitos que os camponeses, e as operárias, os mesmos que os operários. Em todo lugar a mulher pode votar, ser membro dos sovietes ou comissária, e até comissária do povo.

A lei equipara a mulher em direitos, mas a realidade ainda não a libertou: as operárias e camponesas continuam subjugadas ao trabalho doméstico, como escravas dentro da própria família.

Os operários devem agora cuidar para que a realidade tire dos ombros delas o fardo da lida com os filhos e alivie às operárias e camponesas o peso dos serviços de casa. A classe operária também está interessada em liberar a mulher nessas esferas. Os operários devem entender que a mulher é tão integrada à família do proletariado quanto eles próprios, pois ela trabalha sob as mesmas condições que o homem. Um terço de todas as riquezas da Terra surge das mãos das mulheres; a Europa e a América contam 70 milhões de operárias. Numa sociedade comunista mulher e homem devem ter direitos iguais! Sem essa igualdade, não há comunismo.

Então, mãos à obra, camaradas trabalhadoras! Iniciem sua emancipação! Construam creches e maternidades, ajudem os sovietes a organizar refeitórios públicos, ajudem o Partido Comunista a edificar uma nova e radiosa realidade. Tomem lugar nas fileiras de todos os que lutam pela libertação dos trabalhadores, pela igualdade, pela liberdade e pela felicidade dos filhos de vocês. Tomem lugar, operárias e camponesas, sob a bandeira vermelha revolucionária do vitorioso comunismo mundial!



domingo, 7 de dezembro de 2014

Problemas de tradução do russo (3)


Link curto para esta postagem: fishuk.cc/russo3


Por Erick Fishuk


Termino com este texto uma breve série em que espero ter bem abordado várias questões que me fizeram pensar durante a tradução de textos da língua russa para a portuguesa, especialmente canções e discursos da era soviética. Eu havia escrito e salvado esses apontamentos como notas no Facebook e, após algumas revisões, publiquei nessas últimas três semanas. Não deixem de ler também o primeiro texto e o segundo texto da série, para conhecer a ideia por trás das publicações, meus pressupostos em teoria tradutória e algumas informações sobre os autores de livros que cito aqui.

Nesta terceira postagem, um pouco mais longa e também mais minuciosa (o que pode tê-la tornado mais árida), dou exemplos de como lidar com as repetições de palavras e expressões no texto de partida, especialmente se elas tiverem função estilística, e como por vezes a condensação do tamanho do texto na versão de chegada é possível prejudicando ao mínimo a passagem de significados. Para tanto, serão mencionados vários procedimentos técnicos que os teóricos da tradução mais consagrados descrevem em suas obras e cujo esclarecimento pode exigir pesquisa adicional. Também é recomendável que as leitoras e leitores tenham algum conhecimento de russo, mesmo apenas do alfabeto cirílico, porque nem sempre vou traduzir ou transliterar as palavras e frases dos textos de partida.



REPETIÇÃO E CONDENSAÇÃO

Concluí mais uma tradução de um pequeno discurso de Lenin, e me deparei com alguns problemas tradutórios que gostaria de compartilhar. São relativos à manutenção de repetições estilísticas e à condensação de duas expressões numa só, mas carregando o sentido de ambas.

A primeira questão se refere ao seguinte trecho:

“Почему мы победили Юденича, Колчака и Деникина, хотя им помогали капиталисты всего мира? Почему мы уверены, что победим теперь разруху, восстановим промышленность и земледелие?”

Para tornar a exposição mais fácil, vou mostrar a solução à qual cheguei:

“Por que vencemos Iudenich, Kolchak e Denikin, embora eles tenham sido auxiliados pelos capitalistas do mundo inteiro? Por que estamos certos de que agora venceremos o caos e restauraremos a indústria e a agricultura?”

Inicialmente, levando em conta o fato descrito, fiquei tentado a traduzir o início da frase assim: “Como foi que vencemos...” ou “Como foi que conseguimos vencer...”, e queria manter o “Por que estamos certos...” posterior. Contudo, julguei que essa repetição de “Почему мы...” dava um efeito de complementação por meio da repetição, então mantive intacto o “Por que...”, e retirei o “nós/мы” para dar mais dinamismo à frase. Eu também quis traduzir o “победили” inicial (pretérito do verbo “победить”, que pode significar “vencer”, “derrotar” ou “superar”, conforme o contexto) como “derrotamos”, pois se tratava de uma derrota militar imposta aos líderes do Exército Branco. Mas daí ia quebrar a repetição com o “победим” (“venceremos”, futuro do mesmo verbo “победить”), que até poderia ser traduzido como “superaremos”, “ultrapassaremos” etc., mas que cabia muito bem como “venceremos”. Então, o efeito ficaria algo parecido como: “Por que vencemos...? E por que venceremos...?”

Notável é que a tradução inglesa disponível no site Marxists.org, entre outras perdas de sutileza, apresenta o trecho da seguinte forma: “How was it that we conquered Yudenich, Kolchak and Denikin, although they had help from capitalists of the whole world? Why are we sure that we will now overcome the ruin and rebuild our industry and agriculture?” Ou seja, as duas repetições são perdidas para “How was it that we...”/“Why are we...” e “conquered”/“overcome”. O tradutor para o inglês também deixou escapar uma falta de constância ao traduzir, mesmo em ocorrências distantes, a expressão “мы уверены, что...”, que fixei como “estamos certos de que...” (mas que poderia tomar outras formas), numa vez como “we are sure that...” (na verdade, “... are we sure that...”) e na outra, “we are convinced that...”. Não sei, claro, com meu pouco conhecimento técnico de inglês, se as contingências exigiriam essas formas diferentes, mas no russo parecia não haver distinção.

Não estou considerando aqui diversos tipos de repetição que Lenin faz, mais retóricos do que estilísticos, por conta da situação oral em que se encontra, e que geralmente omito, porque minhas traduções, a princípio, se destinam apenas a serem assimiladas na forma escrita (um filme de época com um ator interpretando Lenin, por exemplo, exigiria a reprodução dessas mesmas repetições retóricas). Para ficarmos no mesmo texto: “так же сознательно, с такой же твердостью, с таким же героизмом”, literalmente “tão conscientemente (quanto antes), com a mesma firmeza, com o mesmo heroísmo”, e que reduzi para “com a mesma consciência, firmeza e heroísmo”, incluindo ainda a transposição de um advérbio em substantivo (falarei desse procedimento técnico adiante).

Também achei interessante, sem arrogância, uma solução à qual cheguei traduzindo o seguinte parágrafo:

“Долой шкурников, долой тех, кто думает о своей выгоде, спекуляции, об отлынивании от работы, кто боится необходимых для победы жертв!”

A primeira solução à qual eu havia chegado era esta:

“Abaixo os arrivistas, abaixo os que só pensam em lucrar, especular, esquivar-se ao trabalho e que temem os sacrifícios indispensáveis à vitória!”

Quero concentrar a atenção no seguinte trecho: “кто думает о своей выгоде, спекуляции, об отлынивании от работы”. Literalmente, temos a seguinte interpretação: “que pensam em seu (próprio) proveito (ou “lucro”, dependendo do contexto), em especulação, no esquivo do trabalho”. Claro que no caso de “esquivo do trabalho” já ficaria muito melhor de cara “em esquivar-se do trabalho”, levando-se em conta que em russo usam-se substantivos em muitos casos em que usamos verbos. Essa é a primeira ocorrência do procedimento técnico de tradução que Vinay e Darbelnet, além de outros autores que os continuaram, chamaram de “transposição”, ou seja, a mudança do material léxico para expressar a mesma ideia (no caso, a transposição de um substantivo em verbo reflexivo). Porém, como vimos, a dinâmica da frase exigiu também a transposição dos substantivos “выгода” e “спекуляция” (ambos, no texto, na forma do caso prepositivo singular) para os verbos “lucrar” e “especular”, havendo ainda o acréscimo da palavra “só” por questão de ênfase e a omissão (que também seria um procedimento técnico, segundo Vázquez-Ayora) do pronome possessivo “своя” (“sua”, “sua própria”, sempre se referindo ao sujeito da frase, no texto também na forma do prepositivo singular “своей”).

Contudo, dois dias após fazer a primeira tradução desse parágrafo, numa das várias revisões do texto, dei-me conta de que Lenin, ao falar em “lucro/proveito” e “especulação”, não estava falando dos capitalistas que imperavam antes na Rússia, e sim dos arrivistas e aproveitadores que grassavam no Exército Vermelho. Portanto, as alusões a termos de economia e mercado não eram aí plenamente cabíveis, nem mesmo como metáfora, pois prejudicavam a compreensão. No caso de “выгода/lucrar”, pensei primeiramente em substituir por “aproveitar-se” (poderia ser também “dar-se bem”) ou “aproveitar”, este, porém, sendo muito incompleto. Contudo, ainda restava decidir o que fazer com “спекуляция/especular”. Claro que o Aurélio oferecia vários significados para “especular” e “especulação”, como “Investigação teórica, esp. de natureza exploratória, sem apoio de evidência sólida”, “Compra e venda de mercadorias ou títulos, esp. de forma arriscada e visando lucros altos e rápidos”, “Negócio em que uma das partes abusa da boa-fé da outra”, “Examinar com atenção; averiguar minuciosamente; observar; indagar; pesquisar”, “Transacionar, esp. de forma arriscada”, “Valer-se de certa posição, de circunstância, de qualquer coisa, para auferir vantagens; explorar”, “Comprar e vender (mercadorias, títulos, etc.) buscando ganhos a partir da oscilação dos preços, e correndo o risco de perdas”, entre outros. Da mesma forma, os dicionários russos online transitavam entre os significados desde “operação financeira” até “busca de lucros ou vantagens fáceis”, passando por “pensamento ou raciocínio vão, sem apoio na prática”. Mas eu achava que “especular” ainda era muito ligado, para os brasileiros, às práticas do mercado financeiro.

Como se pode notar, até mesmo pela não repetição da preposição “о” (sobre, em, a respeito de) em “о своей выгоде, спекуляции” e pela sua retomada em “об отлынивании от работы” (об = forma usada antes de som vocálico), tem-se a impressão de que “выгода” e “спекуляция” são usadas como sinônimos ou palavras complementares para uma mesma ideia, e que de alguma forma a ideia de “lucrar” já está em “especular”, consistindo, portanto, numa espécie de repetição ou ênfase. A diferença é que “especular” continha ainda a ideia de “jogar com a ocasião”, “fazer apostas arriscadas”. Assim, decidi trocar as palavras “lucrar, especular” por “tirar proveito das situações”, pois a ideia de “lucrar” estaria contida em “tirar proveito”, e a de “especular”, em “das situações”. Diga-se “das situações”, e não “da situação”, pois se faz uma generalização, e não a especificação de um caso. Assim, mais uma tentativa:

“Abaixo os arrivistas, abaixo os que só pensam em tirar proveito das situações, esquivar-se ao trabalho e que temem os sacrifícios indispensáveis à vitória!”

Alguns dias depois de deixar a tradução “descansando”, reli-a novamente e pensei melhor na conveniência da inserção do advérbio “só”, pensando se Lenin queria dizer mesmo “só pensam” apenas com o verbo “думает” (pensam). Olhei melhor o verbete “думать” (forma infinitiva) no meu dicionário e vi que, além da possibilidade de deixar simplesmente como “pensar em”, poderia usar outros sinônimos da ideia, como “tencionar”, “cuidar de”, “preocupar-se com”, entre outros. Mas julguei que “pensar em” ficaria muito localizado, válido apenas para aquele momento, sem refletir possíveis características interesseiras intrínsecas a esses arrivistas. Então, procurando sinônimos, achei mais adequado e sonoro o verbo “buscar”, além do que decidi fazer novas modificações gramaticais para tornar a frase mais natural. A versão definitiva foi, afinal, esta:

“Abaixo os arrivistas, abaixo os que buscam tirar proveito das situações e esquivar-se ao trabalho, temendo os sacrifícios indispensáveis à vitória!”

E, para terminar, mais uma piadinha relacionada à minha tradução. O adjetivo “вечная”, feminino de “вечный”, presta-se a inúmeras traduções: “perpétua”, “eterna”, “incessante”, “imortal”... Pois bem, eu deveria traduzir a expressão “Вечная слава...”, que instintivamente transformei em “Glória eterna (a)...”. Para tirar a dúvida, inseri “вечная слава” no tradutor do Google, e ele me deu “glória imortal”. Contudo, vejam só: ao inserir o ponto de exclamação em “вечная слава!”, a tradução se transformou em “glória eterna!”. Vai entender...

P.S.: Link para o texto em russo e em inglês: clique aqui. Reparei que nesta versão, na frase “о своей выгоде, о спекуляции”, a preposição “о” é, sim, repetida.